domingo, 20 de dezembro de 2009

Capítulo 6 - Quebra Cabeça

Assim que cheguei em casa, corri para cozinha. Já se passava de meio-dia, e eu podia sentir o meu estômago se contorcendo, protestando com fome. Abri a geladeira e procurei por algo que pudesse ser feito rapidamente. Por sorte, havia um pouco da lasanha do jantar da noite anterior. Peguei a vasilha, tirei a tampa e coloquei no microondas.
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Enquanto o meu almoço esquentava, enchi um copo com refrigerante e me sentei à mesa da cozinha. Não existia uma boa explicação, mas a casa parecia mais colorida. Era como se o sol iluminasse todas as janelas de um vez, dando um brilho dourado e uniforme para os cômodos. Fiquei tão distraído com esta minha nova percepção do lugar, que quase caí da cadeira quando o timer do microondas soou avisando que a minha comida estava pronta.
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Ainda um pouco estabanado pelo susto, retirei a vasilha do eletrodoméstico e despejei a lasanha fumegante sobre um prato. A fumaça que se desprendia da massa borbulhante parecia formar para mim vultos espiralantes, que se contorciam e se elevavam em minha direção - iguais às sombras que eu havia visto um pouco antes de Líon cair na piscina. ''Mais que bobagem'', pensei alto, levando a minha refeição para a sala e ligando a televisão.
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Não havia nada de interessante àquela hora. Depois de passar os canais umas duas vezes, sem encontrar algo que me chamasse a atenção, resolvi desligar o aparelho e comer o meu almoço em silêncio. Apesar da lasanha estar extremamente quente, a engoli com uma voracidade animalesca.
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Logo depois da última garfada, me arrependi do meu afobamento. A comida estava à tal temperatura que parecia que a sala estava sendo consumida por um incêndio de chamas invisíveis. Tentando consertar o estrago, bebi o refrigerante de um só gole, ao mesmo tempo em que tirava o paletó e a camisa do uniforme. Não adiantou nada - meu corpo ainda transpirava e minha garganta parecia mais seca do que nunca.
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Sem pensar em nada, voei escada acima, na direção do banheiro. Eu só precisava de um banho... talvez aquilo resolvesse. Terminei de tirar a roupa e me enfiei em baixo do chuveiro. De início, a ducha diminuiu a minha temperatura elevada - mais não melhorou em nada na minha agitação. Mas isto realmente não me surpreendia.
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Em uma única manhã havia acontecido mais coisas do que em toda a minha vida em Ventura. Conhecer Líon, o salvar de um afogamento iminente e ainda por cima ter uma reação estranha só de ver a irmã dele não eram coisas que eu esperava viver quando saí de casa pela manhã. Depois de tudo aquilo, parecia surreal que até a noite passada minha maior preocupação era um mísero pesadelo.
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Coloquei meu uniforme e minha toalha no cesto de roupas sujas e vesti meu velho moletom. Escovei os dentes com força, sem realmente ver meu reflexo no espelho, e saí do banheiro não pensando muito no que ia fazer. Deixei que minhas pernas tomassem o controle do meu corpo, guiando-me pelo corredor do 2º andar, me levando na direção do meu quarto. Antes que eu percebesse alguma coisa, já havia entrado no cômodo e me sentado de frente para o meu cavalete de desenho – um velho presente que meu avô, desenhista de mão cheia, havia me dado um pouco antes de morrer . Com uma reação natural, peguei um lápis esquecido no móvel e repousei a minha mão sobre o papel em branco.
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Foi ineperado. Assim que a ponta do grafite tocou a superfície branca, minhas mãos começaram a traçar linhas e formas. Toda a minha agitação parceia fluir unicamente para aquela zona do meu corpo, os movimentos cada vez mais precisos e retos. Parte do meu cérebro sabia muito bem o que eu estava desenhado, mais a outra parte - a consciente - se surpreendia ao ver os detalhes se formando diante dos meus olhos.
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Trabalhei com afinco por horas, às vezes apagava um canto e o redesenhava. A imagem tomava conta de todo o papel, e assim que finalmente minha mão traçou a última sombra, não pude deixar de arquejar - ao mesmo tempo espantado e maravilhado. Pois, impresso à minha frente como uma fotografia em preto-e-branco, estava a cópia exata da janela do quarto de Serina, a figura perfeita da irmã de Líon parcialmente oculta pelas cortinas.
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Por um curto espaço de tempo fiquei adimirando o desenho, a sombra da estranha ligação daquela manhã me conectando a imagem. Só o fato do rosto de Serina parecer ter sido esculpido por anjos já era motivo suficiente para prender a minha atenção ... Mas algo naquele rosto não me era estranho. A certeza disto martelava de forma insistente em minha cabeça, o por que de minha agitação ficando mais claro.
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Ela era um enigma. E eu tinha que desvendá-lo.
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O barulho da porta de entrada sendo forçada me despertou do devaneio. Instintivamente, olhei para o relógio luminoso na cabeceira da minha cama e levei um susto. Já eram seis da tarde, e eu não havia feito nada além do desenho. Com pressa, guardei a ilustração da janela de Serina em uma pasta que estava sobre a minha escrivaninha e corri para a sala.
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- E aí, garoto?... parece que o seu primeiro dia não foi tão ruim quanto esperava - Cirus me enacarou sorridente, assim que aterrizei no piso sob o poste de emergência.
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- É, mais ou menos isso... - respondi baixo, encolhendo os ombros - Acho que fiz um colega.
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Logo que eu terminei de falar, meu pai congelou no lugar. Com um movimento lento, ele girou nos calcanhares e me observou estupefato.
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- Vo.. você disse... um colega? - perguntou Cirus, os olhos esbugalhados - Você está me dizendo que Adrian Regis fez um colega?
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- Bom, foi o que eu disse! - resmunguei, cruzando os braços sobre o peito.
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- Nossa, acho que estou vendo tudo girar!
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Não pude deixar de revirar os olhos enquanto Cirus fingia perder o equilíbrio e se apoiava na estante da televisão. Era mais uma pérola do momento Filho - Pai. Sem perder tempo vendo a gracinha do meu responsável crianção, cruzei a sala em passos largos e me sentei pesadamente na poltrona ao canto.
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- Se o senhor já terminou de me fazer de bobo...
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Cirus se permitiu um último sorriso e pendurou suas chaves no gancho ao lado da porta. Com passos firmes, ele caminhou na direção do sofá à minha frente, acomodando-se pesadamente com um olhar ainda divertido.
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- Tudo bem, tudo bem - murmurou ele, despenteando os cabelos negros de uma forma marota - Então, o que você saber?
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Eu sabia que ele faria esta pergunta, mas como sempre, a sua falta de rodeios ainda me impressionava. Me controlei, respirando fundo, então resolvi explicar tudo - desde o começo, nos mínimos detalhes. Contei como conheci Líon no pátio, falei de como ele foi paparicado pelo Dir. Nigro até chegar ao ponto principal da conversa: o incidente no Pavilhão da Tortura.
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Durante toda a minha descrição do atentado, o rosto de Cirus se transformou de divertido para apreensivo. Quando terminei minha breve narração, ele fechou os olhos de forma concentrada e balançou vagarosamente a cabeça para cima e para baixo, como se coloca-se engrenagens invisíveis para funcionar só com a força do pensamento. Continuei sentado na poltrona, meus braços envolvendo minhas pernas, esperando pacientemente o veredito dos fatos ocorridos naquela manhã - coisa que aconteceu meio minuto depois.
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- Hum, interessante - começou Cirus, abrindo os olhos - Você disse que sentiu algo parecido como um imã lhe atraindo para o garoto Líon, um pouco antes dele escorregar da plataforma?
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- Sim...
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- E também que viu um garoto... alguém que você nunca viu na vida e que, pelo visto, só você o havia notado... empurrando o seu colega do alto da plataforma?
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- Sim... - respondi, desta vez mais nervoso do que antes.
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- Hum, interessante - repetiu Cirus, pondo-se de pé e caminhando na direção da janela à minhas costas - Pode parecer estranho, mais não exite outra explicação!
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Meu pai se virou para mim e, desta vez, sua face trazia uma expressão de surpresa. Sua boca se entreabriu boquiaberta e seus olhos cinzentos pareciam querer saltar das órbitas.
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- Filho - disse ele, num tom mais baixo que um sussurro - acho que o seu colega está sendo perseguido por um... demônio.
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- O quê?! - exclamei, alarmado demais só de imaginar algo como aquilo.
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O que Cirus estava me dizendo não fazia o menor sentido. Eu já havia visto um demônio antes. Para falar a verdade, eu já havia visto uma dezenas deles. E uma coisa era certa: todos, sem exceção alguma, não lembravam em nada o garoto que empurrara Líon da plataforma da piscina.
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- Pai, isto não pode ser possível - resfoleguei, começando a sentir o ar me faltar nos pulmões - Eu já vi demônios antes, e tenho certeza que saberia reconhecer um. Mas o cara da Constantine... não, ele parecia tão comum... tão humano!
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Cirus meneou a cabeça em consentimento. Ao que parecia, ele esperava que eu tivesse aquela reação.
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- Eu sei, eu sei - concordou ele, ainda balançando a cabeça - Eu prestei bastante atenção ao seu relato. Mas Adrian, acredite, todos os demônios que você já viu nesses seus dezoito anos - por mais breve que foi o momento - já foram exatamente como o rapaz misterioso da sua escola.
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Eu ainda não podia acreditar. Como se fosse possível, expeli o pouco ar que me restava nos pulmões e apertei ainda mais o abraço que dava em minhas pernas. Percebendo a minha reação, Cirus se postou no braço da poltrono aonde eu estava e começou a afagar ligeiramente o topo da minha cabeça.
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- Fica calmo, amigão, isto tudo pode ser resolvido bem rápido - prometeu ele, agitando um pouco mais rápido os meus cabelos, se esforçando ao máximo para demonstrar confiança no que estava dizendo. - Afinal, ao que parece, o demônio de Líon ainda está em um estágio inicial... E como dizem, quando o mal é descoberto no começo, ele pode ser neutralizado mais rápido.
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- ''O demônio de Líon ainda está em um estágio inicial''... - repeti , não entendendo patavinas sobre o que meu pai estava falando - O que o senhor quer dizer com isso?
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Avaliando a minha confusão, Cirus se levantou do braço da poltrona e se postou na minha frente com os braços cruzados. Eu reconheci aquele movimento. Significava que meu pai estava pronto para me dar mais uma ''Lição de Como Ser Um Arcano''.
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- Adrian - começou ele, sua voz já no modo ''professor'' - você sabe como ''nasce'' um demônio?
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Mesmo tentando me controlar, tive que revirar os olhos diante da pergunta. É claro que eu sabia como os demônios haviam nascidos. Acho que até quem não era um Arcano sabia. Porém, avaliando a minha rápida conclusão, Cirus meneou a sua cabeça negativamente e continuou:
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- Não, não estou falando dos ''Originais'' ... O que estou perguntando é se você sabe como os demônios de hoje, aqueles que nós enfrentamos, surgem.
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Aquilo sim me pegou de surpresa. Que diferença poderia haver entre os ''Originais'' e os demônios que os Arcanos enfrentavam quase todos os dias? Mas uma vez naquele dia parecia que pai falava uma língua que eu não conhecia.
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- Eu acho que não estou entendendo aonde o senhor quer chegar... - confidenciei, a confusão crescendo cada vez mais em minha mente.
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Com outro aceno, Cirus se distanciou de mim e postou-se no sofá mais a frente, a resignação de ter que esplicar algo que parecia óbvio para ele estampada em sua face.
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- Filho.. - Cirus piscou, o meio sorriso brincando em seus lábios - os seres que enfrentamos não são os mesmos das Primeiras eras. Os que nós enfrentamos só podem atuar no mundo físico - diferente dos ''Originais''.
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Assenti devagar, começando a entender o que ele me falava.
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- Então, como nascem os ''nossos'' demônios? - perguntei, já tentando imaginar qual seria a respostas.
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- Bom, é uma história um pouco complexa - confessou Cirus, encolhendo os ombros ligeiramente - Basicamente, todos eles já foram humanos.
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- Ja foram o quê?! - exclamei, o choque cobrindo a minha face.
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- Isso mesmo, já forma humanos - repetiu meu pai, não alterando o seu tom calmo - Na verdade eles são justamente isto: Humanos que morreram mas que não completaram a passagem devido a algum impencílio.
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Impencílio? Que tipo de impencílio poderia poderia aprisionar alguém na forma eterna de uma criatura das trevas?
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- Geralmente, o rancor - continuou Cirus, antevendo a minha pergunta antes mesmo de fazê-la- ou o ódio extremo. Somente esses dois sentimentos poderiam ter o poder de confinar uma alma aqui na terra e transformá-la em um demônio, mesmo o corpo dessa pessoa estando morto.
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- Mas isto é horrível! - exclamei, o choque e o medo presentes tanto na minha voz quanto em meu rosto.
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- Eu sei - concordou meu pai, o olhar mais penetrante a cada palavra - Mas é a verdade. Quanto mais essa alma guarda este rancor, ou este ódio, mas ele se transforma em ser negro. Por isso o jovem que você encontrou lhe pareceu diferente dos outros demõnios que encontramos... Ele ainda está no começo do processo... ainda há chances de intervir sem danos piores.
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''Danos Piores''. Agora eu conseguia encheragar o que essas palavras significavam. E, tenha certeza, eu não desejava esse destino para o meu pior inimigo - muito menos Oliver.
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- O que vamos fazer? - questionei por fim, a pressão em meus pulmões mais dolorosa do que nunca.
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- Hoje, nada... - afirmou Cirus, pondo-se de pé e indo em direção à cozinha da nossa casa de bombeiros - Amanhã, eu vou procurar no meu intervalo alguma peça que esteja faltando nesse nosso pequeno quebra-cabeça. Enquanto isso, quero que você fique de olho nesse Líon. Por mais que eu ache que o garoto-demônio possa demorar um pouco para agir novamente, é melhor estarmos preparados para qualquer surpresa, não?
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Concordei molemente com a cabeça, o cansaço e a força das revelações desta noite fazendo um grande esforço contra as minhas costas. Antes que eu pudesse pensar em fazer alguma coisa, meu pai voltou a se sentar no braço da poltrona ao meu lado, o olhar cintilando estranhamente à luz do anoitecer.
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- Tudo vai ficar bem, O.k.? - murmurou ele, ao mesmo tempo em que dava palmadinhas desajeitadas em minhas costas - Acho que tivemos um longo dia, não? Por que você não vai lá pra cima descansar um pouco enquanto eu preparo o jantar para nós dois?
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Era tudo o que eu precisava. Sem dizer uma palavra, me levantei da poltrona e fui para o meu quarto. Assim que entrei no cômodo, me atirei na cama e enfiei minha cara no travesseiro, sem me preocupar em ascender a luz. Pelo o que eu podia ver, o céu exibia profundos tons púrpura e já estava escuro o suficiente para que os lampiões de ruas estivessem acesos.
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Agora já estava bem esplícito o que havia acontecido no Pavilhão de Tortura. A questão era que a resposta havia me deixado mais encucado do que a própria pergunta. Eu não me sentia nem um pouco relaxado, muito pelo contrário, estava ainda mais apreensivo. Então Líon estava sendo perseguido por um demônio psicótico? Como a única pessoa legal que eu havia conhecido na Constantine poderia ser o objeto de ira de uma criatura tão malígna?
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Com o passar do tempo, fui sentindo meu corpo mais pesado e minha mente mais leve. Eu sabia que logo a inconsciência iria chegar, mas será que eu queria realmente dormir? Tentando não pensar no assunto, puxei minhas cobertas e me acomodei na cama. Entre as dúvidas que eu tinha sobre o presente e o meu pesadelo, eu ficava com segundo. Pelo menos, com ele eu só tinha tinha que me preocupar durante a noite.
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E foi assim que – ao tentar não me preocupar com nada - minhas pálpebras foram ficando cada vez mias pesadas e, junto com o sereno da noite, o sono chegou.

domingo, 8 de novembro de 2009

Capítulo 5 - O Anjo

Líon e eu saímos do Prédio Principal da Academia Constantine no exato momento em que o sino da torre do relógio anunciava para todo o quarteirão o começo do segundo período. O sol estava apino, mas como de costume, o vento ártico varria a rua da escola, que se encontrava deserta aquela hora do dia.
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- E então - puxei assunto, enquanto terminava de abotoar meu agasalho por cima do uniforme - você mora muito longe daqui?
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- Não muito - disse Líon - mas você não precisa realmente me levar pra casa... Eu só estava brincando.
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- Tudo bem, eu levo mesmo assim... - completei, seguindo o caminho que ele tomava - vai que você atravessa a rua sem a devida atenção e não tem niguém lá pra te salvar do atropelamento iminente?
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Olhei sarcasticamente para o novato, no mesmo instante em que ele se virava para mim e me mostrava o dedo médio - o que foi muito grosseiro, não nego, mas me fez cair na gargalhada. Afinal, mesmo quando estava aborrecido, Líon era uma pessoa fácil de se lidar. E diferente dos outros garotos de Ventura, ele não parecia esperar que eu lhe transmitisse algum tipo de vírus mortal ou qualquer coisa do tipo.
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- Bom, não pode negar que há uma possibilidade... e que seria realmente útil se houvesse alguém por perto - continuei, logo depois de ter certeza que ele parecia não estar mais irritado.
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-Sabe, você tem razão - concordou Líon de má vontade - São poucas as pessoas que tem a oportunidade de conferirem o meu ''pendor para desastres'' logo no dia em que me conhecem.
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- Então devo ficar honrado? - perguntei, a expressão sarcástica ainda em meu rosto e em minha voz.
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Só pela careta de Líon, percebi que ele estava falando sério quanto a história de ''pendor para desastres''. Sem sombra de dúvidas, eu havia encontrado um concorrente sério para o prêmio de Azarado do Ano. Tinha certeza absoluta que a má sorte dele só não era maior que a minha por um mero detalhe: Ele não tinha que se preocupar em esconder a sua peculiaridade toda vez que botava os pés na rua.
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Depois de atravessarmos duas avenidas e percorremos quatro blocos, entramos em uma rua calma e arborizada. Ela era composta basicamente de residências altas e estreitas, os jardins sem muro se resumindo a um quadrado na calçada, as casas separadas umas das outras apenas por pequenos vãos entre as paredes - assim como todas as áreas residenciais da cidade.
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Eu conhecia bem aquele lugar. Usando como referência a vista panorâmica que eu tinha do meu telhado, aquela parte de Ventura ficava atrás da minha casa, duas quadras abaixo.
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Era engraçado imaginar que, hoje pela manhã, eu não estava com a mínima vontade de ir para a escola e, agora, eu estava contando as horas para que o dia seguinte chegasse logo... Como eu imaginaria que iria conhecer o primeiro aluno decente da Constantine nos últimos segundos do segundo tempo?
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Antes do esperado, nós já havíamos chegado à casa de Líon e estávamos parados em frente à pequena escada de entrada da morada dos Biel.
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Eu estava prestes a me despedir do garoto quando algo surreal me paralisou: um vulto escuro e baixo surgiu no batente da porta, um silvo agudo escapando de suas presas à mostra. Antes que pudesse pensar em fazer alguma coisa, a sombra negra arqueou o corpo e saltou na minha direção, suas garras longas e afiadas prontas para perfurarem o meu rosto.
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Me preparei psicologicamente para sentir a dor aguda do ataque... mas não foi o que ocorreu. Com uma agilidade inesperada, Líon aparou o vulto com as mãos e o aninhou em seu colo. Foi só então que eu percebi que a coisa que havia acabado de tentar me atacar não passava de um gordo e feio gato preto de olhos amarelos.
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- Ai, ai, ai!... O que foi isso Sortudo? - Líon ralhava com o animal, mas o bichano continuava a me observar irritado - O papai já não disse que não se deve atacar às visitas?!
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- Papai? Sortudo? - eu sabia que meu rosto devia estar em choque. E o gato continuava me encarando ferozmente, os pêlos da nuca eriçados e suas pequenas presas arreganhadas como uma placa de aviso.
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- Sim, ele é meu... - respondeu o novato, ainda distraído em sua tentativa de acalmar o felino - Ganhei de presente da minha irmã Serina; uma brincadeira com toda a história da minha ''má sorte''.
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Bom, se Líon estava tentando mudar a sua fortuna, eu tinha absoluta certeza que ter um gato preto como bicho de estimação não estava ajudando muito... Não que eu não goste de gatos - pelo contrário, são eles que não gostam de mim!
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Uma vez, quando eu era menor, um gato de rua tentou arrancar os meus olhos só por que passei perto demais. Depois do episódio, meu pai me explicou que geralmente animais e insetos podiam reconhecer quando uma pessoa era completamente normal ou era ''tocada'' por algo sobrenatural. O único problema nisto estava no fato de que geralmente os gatos (assim como a maioria dos seus irmãos felinos) eram os únicos que não sabiam reconhecer quando o ''toque'' significava ser algo bom ou ruim - o que os deixam arredios e violentos sempre que se deparam com algo que não consideram natural.
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Resultado: não importa se você é um Arcano ou algo muito pior, gatos sempre irão querer acabar com a sua raça.
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Enquanto Líon tentava inutilmente acalmar os ânimos de Sortudo, resolvi admirar um pouco a faixada da casa dos Biel. Assim como os outros prédios da rua, a construção era de um tom escuro, com o telhado cor-de-chumbo em diagonal, inclinado na direção da entrada, e o canteiro ao lado da pequena escada repleto de flores coloridas. Eu não podia enxergar muita coisa do seu interior - quase todas as janelas estreitas estavam cobertas por finas camadas de cortinas de seda clara.
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Quase todas... exceto uma.
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Logo acima da entrada, uma janela se encontrava ligeiramente entreaberta. As cortinas pendiam livres atrás do vidro, formando uma pequena brecha pela qual podia-se ver o teto rebuscado de um quarto e a luminária delicada fixada no centro. Sem saber muito bem o por que, fixei o meu olhar naquela direção e não desviei mais. Parecia que uma estranha força me conduzia naquela direção, como por encanto. Não era a mesma sensação que eu sentira na piscina com o Líon... Pelo contrário, era muito melhor - simplesmente indescritível. Era como se todo o meu instinto quisesse ficar parado ali, só admirando aquele pedaço do cômodo, sem ver o tempo passar.
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E foi isto que eu fiz, por longos minutos. Parte de mim ainda podia vislumbrar a pequena luta do novato com o seu gato, e outra pequena parte parecia estar atenta ao fato de eu estar parado, com um uniforme escolar, no meio de um rua completamente estranha. Porém, toda o conjunto dominante, desde os meus nervos até a consciência, pareciam estar interligados àquela janela - como se esperassem que algo grandioso e surpreendente pudesse acontecer a qualquer instante.
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E para o meu total espanto, aconteceu.
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Detrás do véu de seda, um rosto belo e delicado como o de um anjo surgiu, observando a rua deserta. Uma longa cascata de cabelos cor-de-chocolate emolduravam a face estranhamente perfeita, sua pele castanha irradiando fracamente os raios de sol que se infiltravam para o quarto pela brecha da janela. Seus olhos escuros e intensos admiraram a rua de ponta à ponta, até que eles finalmente recaíram sobre mim - aprisionando-me por completo.
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A ligação estava feita. A garota e eu nos encaramos por um longo tempo, e eu já podia sentir no meu rosto o fluxo repentino de sangue se formando. Ela me observava com as sobrancelhas cerradas, como se tentasse me reconhecer de algum lugar - a mesma sensação que eu sentia parado na calçada. Para mim, nada ao redor importava. Tudo o que eu precisava era ficar ali, admirando aquele ser celestial à minha frente.
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Nosso pequeno momento parecia estar durando uma eternidade. A garota-com-rosto-de-anjo continuou a me olhar e eu retribuía na mesma intensidade. Após mais um minuto, ela mordeu os lábios rosados e balançou de leve a cabeça, como se tentasse força a si mesma a voltar à realidade. Com um movimento rápido, ela se levantou de onde estava e fechou as cortinas - assim quebrando bruscamente o estranho elo que havia se formado entre nós.
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Sem fôlego, fechei os olhos e também sacudi a cabeça.
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- Hei cara, você está legal? - Líon me encarava preocupado, o bichano em seu colo - apesar de ainda emanar uma áurea ameaçadora - muito mais controlado.
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Balancei afirmativamente a cabeça como resposta. As coisas ao meu redor já haviam voltado ao normal. Aquilo não devia ter passado de um breve segundo, mas para mim foi como se tivesse durado o dia inteiro. Mesmo estando ainda descomposto, meu cérebro trabalhava a uma velocidade surpreendente. Durante um breve instante para considerações, acabei concluindo o óbvio: a garota na janela só podia ser uma única pessoa - Serina, a irmã de Líon... Mas isto não explicava o por quê da sensação de eu à conhecer de algum lugar.
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- Líon, por acaso você e a sua família já vieram para Ventura alguma vez? - antes de terminar a pergunta, eu já havia me arrependido de a ter feito. Aonde eu estava com a cabeça? O que o novato ia pensar de mim?
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- Hum, não... - Líon franziu a testa com desconfiança, mais continuou - Sabe, eu gosto de brincar que somos meio ''nômades''. Eu e Serina nascemos no Rio de Janeiro, mas nós já moramos em tantos lugares que até já perdi as contas... Para ser sincero, mesmo morando em Dumont, eu não fazia a mínima idéia da existência de Ventura!
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O novato acariciou ternamente o gato em seu colo e suspirou. Estava na cara que se mudar para Ventura não havia sido nada legal para o garoto. E eu não podia muito menos culpá-lo por se sentir infeliz aqui... Afinal, eu mesmo queria meter o pé desta cidade - que apesar de linda - era recheada de pessoas falsas e interesseiras.
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- Acho que está na hora de eu entrar... - disse Líon, ainda acariciando Sortudo.
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- É, você tem razão - concordei, satisfeito por ele não ter maldado nenhum pouco a minha pergunta. - Acho que nos vemos amanhã na escola, não?
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- Com certeza! - o novato abriu um enorme sorriso, e girou lentamente em direção a porta.
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Esperei Líon entrar e trancar a porta de entrada para dar uma última olhada na janela do quarto de Serina e voltar para casa. Eu estava cansado e tinha a esquizita impressão de que minha cabeça pesava mais do que o resto do meu corpo. Flashes dos momentos na piscina e do rosto da irmã de Líon iam e vinham na minha mente, e cada músculo meu parecia estar esticado e retesado como se eu acabasse de percorrer uma maratona.
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Sem duvida alguma, aquele foi o dia mais movimentado de todos os meus 18 anos em Ventura. Eu não entendia muito bem, mas parecia que a minha vida só havia começado naquela manhã - como se todo o resto não passasse de um pesadelo, uma sombra indistinta em meus pensamentos.
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Dei uma última olhada para a casa dos Biel e virei a esquina. Por mais excitado, impressionado, desconfiado e cansado que estivesse, tudo o que eu queria naquele ponto era estar em casa - esparramado sobre o sofá da sala, aproveitando cada segundo deste meu inesperado dia de folga.

Capítulo 4 - Espelho

- Acho que devemos levá-lo para a enfermaria, não? - Alice Corvel espiava alarmada a cena por cima do braço de Daniel Maltha, as mãos apoiadas ''ingenuamente'' no ombro musculoso do rapaz.
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- Boa sugestão... - concordou a Treinadora Kara, avaliando cada aluno da turma com seus olhos puxados - Mas deve ser alguém que consiga carregar o garoto daqui até o Prédio Principal com o maior cuidado possível.
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- Eu posso levá-lo - me ofereci, mandando a cautela às favas.
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Sem esperar o concentimento da professora, me levantei em um pulo e ergui Líon como se segurasse um recém-nascido. No mesmo ritmo, me desviei das pessoas ao nosso redor e segui na direção da saída. Com um empurrão, abri uma das folhas de metal que formavam o portão do ginásio, andando tão apressado que nem parecia que carregava uma pessoa de quase 80 quilos no colo.
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Mas eu carregava. E por onde passava, as pessoas pareciam notar este pequeno detalhe também. Com um suspiro, me esforcei para fazer uma careta de cansaço enquanto atravessava às pressas o campus da escola, indo em direção à enfermaria no Prédio Principal. Isto não devia importar agora, mas por mais preocupado que estivesse com o bem estar do novato, não podia de forma alguma deixar que alguém suspeitasse de mim mais do que já era de costume.
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Mesmo com os solavancos que eu dava pelo caminho de pedra no pátio, o rapaz não se movimentava um milímetro sequer. Seus olhos continuavam cerrados melancólicamente e sua respiração ainda era pesada, como se ele se esforçasse para fazer uma tarefa tão simples. Não conseguindo mais conter a agonia, comecei a murmurar cada vez mais alto os meus pensamentos, esperando ingenuamente que aquilo ajudasse o garoto em meus braços de algum jeito.
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-Ah, vamos lá cara, reaja! - resmunguei alto, no momento em que eu entrava no corredor da enfermaria.
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- Reagir a quê? - uma voz seca me interrogou, me fazendo parar com o susto.
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Olhei abismado para o novato, não acreditando no que havia escutado. Mesmo conservando a palidez anormal e respirando com clara dificuldade, Líon parecia 100% melhor. Seus olhos, grandes e curiosos, agitavam-se em todas as direções e seus braços magros e compridos tentavam inutilmente se livrar do aperto inconsciente que eu dava, completamente estarrecido com a rápida recuperação do rapaz.
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- Hei, o que está acontecendo aqui? - perguntou Líon, a confusão estampada em seu rosto redondo.
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No mesmo instante, o prof. Novaz - responsável pela enfermaria e pela aulas de Biologia - veio correndo na minha direção já preparado, obviamente avisado por telefone pela Treinadora Kara.
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- Pode deixar, Adrian - ordenou ele, tomando o novato dos meus braços e voltando para a sala às suas costas - Eu cuidarei dele partir de agora.
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- Não, eu vou com vocês - disse em voz alta, num tom mais alto do que pretendia.
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O professor se virou brevemente e concordou com impaciência. Sentindo um estranho puxão na beirada do estômago, segui os dois pelo corredor e entrei sem cerimônias na enfermaria. A sala era branca e contava com apenas uma maca, um armário para os medicamentos e equipamentos médicos e uma pequena mesa cheia de papéis que deviam pertencer ao socorrista.
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Com uma habilidade impressionate, o jovem prof. Novaz pôs Líon cuidadosamente sobre a maca, sem demonstrar ter consciência de minha presença logo atrás dele. Em poucos minutos, o homem examinou a garganta do novato, mediu sua temperatura, verificou a pressão e escutou seus batimentos cardíacos.
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Líon observava tudo com uma feição curiosa, parecendo extremamente encantado com a situação. Nem parecia que aquele garoto havia quase partido desta para uma melhor há poucos instantes. Percebendo a minha expressão especulativa, o prof. Novaz se afastou do paciente, deu a volta na pequena enfermaria e sentou-se pesadamente na cadeira logo atrás de sua mesa.
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- Bom - suspirou ele, arrumando a papelada sob a bancada - pelo visto, toda essa confusão não passou de um susto.
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- Um susto? - Eu mais uma vez falava com o socorrista mais alto do que na verdade queria - Professor, o Líon despencou de quase oito metros de altura!
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- Eu sei muito bem d'aonde o aluno Líon caiu - o prof. Novaz pareceu encontrar um papel pelo qual estava procurando e se levantou - Mas, pelo exames preliminares, tudo indica que ele está perfeitamente bem. Agora, se vocês me permitirem, irei avisar ao responsável do jovem sobre o ocorrido...
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-Não! - Líon exclamou, a voz ainda seca, porém demonstrando estar bastante consciente da situação.
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- Não?...Mas por quê? - o professor se deteve à porta da enfermaria, fazendo uma careta de espanto à reação inesperada e exagerada do aluno-paciente.
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- É que... é que...bem - o novato ergueu-se devagar, encostando sua cabeça na parede branca e colocando suas pernas para fora da maca - Meus pais devem estar acabando de descarregar as nossas coisas na casa nova e... acabamos de chegar de Dumont...bom, não queria atrapalhar eles com uma coisa tão boba.
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O homem continuou parado, ainda sem entender aonde o rapaz queria chegar.
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- Senhor, acho que deve saber... - suplicou Líon, passando as mãos pelos cabelos molhados, o constrangimento estampado em cada gesto - Meu pai e minha mãe passaram por bastante dificuldades nesses últimos tempos... A última coisa que eu quero é estragar um raro dia de calmaria para eles com uma coisa que, segundo o senhor, nem teve tanta importância assim!
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O discurso de Líon parecia ter pego o prof. Novaz de calças curtas. Por um segundo, ele pareceu refletir sobre o que o garoto dissera - como se decifrasse uma misteriosa e difícil mensagem cifrada - até balançar molemente a sua cabeça, demonstrando ter perdido a pequena batalha mental na qual travou consigo mesmo.
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- Se é assim que você quer... - ele entrou de novo na sala, detendo-se rapidamente na sua pequena bancada - Mas você vai me prometer uma coisa: enquanto eu estiver na secretaria resolvendo alguns negócios, o senhor vai ficar aqui descansando, O.k. ?
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- Tudo bem - concordou Líon, claramente entusiasmado.
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-Hum - resmungou ele, olhando com cautela para o estranho entusiasmo do novato - Adrian - se não for pedir muito - será que poderia ficar de olho neste rapazinho para mim, por favor?
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- Sim, professor, é claro que eu fico - me prontifiquei, saindo de perto da parede e me postando perto da maca onde Líon continuava sentado.
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O prof. Novaz encarou mais uma vez o rosto abatido de Líon, viu as horas e deixou a pequena enfermaria com passos largos. Logo após, o novato levantou-se da maca e, com uma determinação assustadora, se virou na minha direção e me observou - como se os seus olhos fossem na verdade um par de detectores de mentira humano.
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- Como você fez aquilo? - ele me perguntou, sua voz ainda seca soava muito mais sinistra do que se estivesse com o seu timbre normal.
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- Fiz o quê? - devolvi com outra pergunta, sabendo exatamente sobre o quê ele estava falando. Sem mistério algum, eu podia ver a pergunta implícita bem diante de sua testa castanha: Como eu tinha conseguido salvar ele, percebendo que ele fora empurrado da plataforma, antes mesmo que qualquer outra pessoa tivesse notado o que realmente acontecera?
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Bom, na verdade, nem eu sabia. É claro que suspeitava que tivesse alguma coisa a ver com os meus dons de Arcano. Mas a questão é que nunca havia sentido nem presenciado algo como aquilo... nunca havia vivenciado uma experiência que chegasse ao menos perto daquela. Pra ser sincero, eu estava tão impressionado quanto Líon devia estar.
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E era certo que ele estava.
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Por um bom tempo ele me analisou. A sensação de ser scaneado por inteiro, provocado pelo olhar inquisidor do rapaz, permaneceu sobre mim no que me pareceu uma eternidade. No fim, Líon me libertou do estranho poder de seus olhos, parecendo - no mínimo - conformado com a minha ''não resposta''.
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- Obrigado - ele disse simplesmente.
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- Não à de quê - eu disse, só agora percebendo que havia atravessado a metade da escola com um garoto nos braços e vestido apenas com os ridículos trajes de banho vermelho-tomate.
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Parecendo entender o meu enbaraço, Líon sorriu e voltou a se sentar na maca de vinil negro. Ele arriou a cabeça e sem querer acompanhei o seu olhar pelo piso claro da enfermaria, completamente marcado por nossos pés descalços e molhados.
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- Sabe, por que você não quis realmente chamar o seu pai aqui para te ver? - me ouvi interrogando, antes mesmo de pensar em me refrear. - Você foi empurrado da plataforma! Deveriam fazer algo a respeito...
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- Acho que você - assim como metade dessa cidade - deve saber, não? - ele murmurou, os olhos ainda detidos no chão - Meu pai e minha mãe mal se recuperaram do meu último susto... Não quero que eles saibam de mais um erro meu.
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- Não foi um erro seu! - rebati, tentando descobrir o que Líon achava que eu sabia ao mesmo tempo em que me lembrava com clareza da aterradora cena da queda.
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Líon me encarou novamente, mas desta vez seu rosto não indicava que ele me avaliava - não, indicava que ele admirava o estranho fato de eu demonstrar estar preocupado com o seu bem estar, tanto físico quanto psiquíco. O que, sem sombra de dúvidas, me fez corar loucamente.
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- Cara, seus pais devem ter muito orgulho de você...
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- Meu pai - corrigi, olhando tão atentamente para o chão que podia vislumbrar as falhas nos rejuntes do piso, pedindo aos céus que ele não percebesse o quão vermelho a minha face deveria estar.
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- Droga, me desculpe - Líon se deu um forte tapa na testa, esperando que isto soasse como uma forma de punição para o seu deslize. Após um segundo, ele limpou a garganta e prosseguiu - Se bem que... hoje em dia é muito normal vermos pais separados. Em Dumont, eu tinha vários amigos na mesma situação que a sua!
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Mordi meus lábios com força, para tentar conter o riso desenfreado que surgia. Ele estava entendendo tudo errado.
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- Não Líon, meu pai não é separado... - expliquei, conseguindo tirar minha atenção da trama de rejuntes - Ele na verdade é viúvo.
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- Pausa para o momento ''me abra um buraco no chão que eu quero fugir!''- Líon deitou-se na cama com força, a mão esquerda na testa e a direita em seu pescoço, tentendo se matar de duas formas diferentes. - Deus, eu não dou uma dentro!
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Me encostei na parede e esperei o novato terminar de se auto-flagelar. No fim, ele se recompôs, respirando lentamente, e murmurando mais mil desculpas para mim.
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- Está tudo bem - respondi com sinceridade - Eu não tive muito contato com ela.
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Mais uma pausa.
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- Quando foi que ela... você sabe, se foi? - eu podia ver todo seu constrangimento por perguntar algo tão pessoal através apenas de sua expressão. - Se não quiser responder, eu entendo! - acrescentou ele de forma rápida.
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- Ela se foi assim que ela deu a luz à mim. - respondi, mesmo sabendo que não tinha nenhuma obrigação de contar aquilo a ele.
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Mas, no fundo, eu sempre quis contar aquilo - ou qualquer coisa - para alguém. E além do mais Líon foi o único, além de Cirus, a me fazer uma pergunta tão pessoal em todos esses meus dezoito anos. Acho que devia essa resposta a ele, como forma de gratidão por um momento tão incomum.
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Ficamos calados, os dois virados na direção do armário de remédios. Assim como acontecia todas as vezes que eu me recordava de minha mãe, fechei os meus olhos e tentei puxar alguma lembrança em que ela estivesse envolvida. E como sempre, só o nada preenchia a minha mente, ocupado apenas pela imagem das fotos espalhadas por nossa casa-de-bombeiros e pelo nome que eu fazia questão de não esquecer: Améliah.
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- Acredite, se sua mãe soubesse o que você fez por mim hoje, ela teria muito orgulho de você - a voz de Líon já devia estar voltando ao normal, mas ao dizer aquilo, eu podia jurar que ela havia falhado - Pode ter certeza disto.
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Antes que eu pudesse agradecer, o prof. Novaz entrou na enfermaria a passos largos, se postando mais uma vez à frente de Líon e o examinando rapidamente.
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- E agora, como você está?
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- Acho que uns 150% melhor - o rapaz encolheu os ombros, a careta de curiosidade e inocência de volta a sua face.
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- Hum, hoje realmente foi um dia difícil para você - o professor sentou-se em sua mesa, pegou um pedaço de papel com o timbre da Academia e começou a escrever - Por que nós não aproveitamos e lhe damos o dia de folga?
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Líon fitou o socorrista sem palavras. Em um pulo, ele se levantou e pegou a licença assinada pelo prof. Novaz com as mãos tremulas e uma expressão arrebatada.
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- Obrigado, obrigado, obrigado... - ele repetia enquanto me acompanhava de volta para o corredor, o rosto afogueado de adrenalina. Nós começamos a caminhar para a saída quando, num surto de inspiração, ele parou, girou nos próprios calcanhares e se inclinou de volta para a enfermaria - Anh, senhor... Posso lhe pedir um outro favor? - O rapaz se dirigiu novamente à sua bancada, a face tristonha e abatida.
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- Claro que pode - O professor fitou Líon sem entender.
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- Hum, o senhor sabe que eu não quero fazer muito alarde sobre o ''incidente da Ed. Física'' - ele revirou os olhos deliberadamente, como se o seu quase óbito estivesse em um passado bem distante - Mas eu não tenho muita certeza se consigo ir sozinho para casa...
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Parecendo cansado e distante dali, o socorrista pegou mais um papel timbrado, rabiscou de uma forma ligeira sobre ele, e depois o entregou a Líon. Com um sorriso, o aluno agradeceu a ajuda e se voltou para mim, uma brilho triunfante iluminando o seu rosto.
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- Aqui - ele me estendeu o papel, quando já estávamos de volta ao corredor - sua carta de alforria por hoje.
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Logo que eu terminei de ler o que havia escrito nele, tive que para de andar. Eu estava em choque. Não podia acreditar no que estava em minhas mãos.
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- Você arranjou para mim uma dispensa escolar? - perguntei com a voz entrecortada pela surpresa.
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- Bom, para isso, você vai ter que me levar para casa - ele levantou as mãos, como se isso pudesse ser um impasse - mas, como depois vai ter um dia inteiro de folga... Acho que estou meio que pagando a minha dívida por... bom, por tudo!
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Continuei parado no corredor, olhando do papel para Líon. Após uns segundos, o novato estalou os dedos diante de mim, olhou ao redor e disse:
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- Hei, Ariel... Acho que você não percebeu que estamos no meio do corredor, usando apenas sungas e camisetas - e daqui a pouco vai tocar o sinal!
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Sentindo um grande sorriso tomar conta do meu rosto, acompanhei o rapaz de volta para os vestiários do Pavilhão da Tortura, mais apressado do que antes.
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Mesmo usando aquela roupa ridícula, eu me sentia bem. Pois se houvessem mais pessoas como o Líon estudando na Constantine antes dele chegar, sem duvida alguma, a Academia não teria sido o lugar triste e infeliz que foi para mim nos últimos anos.

domingo, 25 de outubro de 2009

Capítulo 3 - Salva Vidas

Antes de tomar coragem para entrar no prédio principal da escola, decidi conferir mais uma vez os horários do meu último semestre.
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Segunda Feira:
1° tempo - Ed. Física.
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Olhei para o papel em minhas mãos com extremo mal humor. Eu não suportava as aulas de Ed. Física. De todas as matérias, acho que ela era a única que ficava em primeiro lugar na lista de ''Coisas Que Mais Parecem Uma Tortura Diária''.
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Mas não me leve a mal - eu não sou nemhum nerd descoordenado. O principal motivo que me fazia odiar as aulas de Ed. Física - logo, tudo relacionado a ela - era bastante simples: por ser um Arcano, eu nunca pude realmente praticar coisa alguma.
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Imagine correr, saltar, nadar e fazer outras coisas melhor do que qualquer um em sua escola e não poder nem ao menos demonstrar um terço disto... Era frustrante! Eu poderia calar a boca de muita gente, principalmente de Oliver e sua gangue, mas tudo o que eu podia fazer para não dar bandeira era entrar lá e fingir ser um perdedor total.
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Perfeito, não acha?
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Por isso que, quando eu finalmente resolvi deixar o meu abrigo debaixo da árvore, meu ânimo estava no chão. Eu estava cansado de fingir ser algo que eu não era.
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Logo que eu cruzei o portão de entrada, decidi seguir com pressa para os vestiários. O corredor estava completamente tomado por estudantes, e sem perceber, eu era conduzido pelo fluxo de gente em direção a Ala Norte da Academia Constantine.
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A escola era formada por um conjunto de prédios antigos, com direito à tijolos expostos e uma Torre do Relógio na construção principal. As aulas de Ed. Física eram realizadas no lado mais distante do campus, em uma área fechada a qual eu chamava carinhosamente de ''Pavilhão da Tortura''.
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Assim que eu cheguei ao portão do Pavilhão, fui recebidos pela bela - e nem um pouco simpática - Treinadora Kara. Ela usava o agasalho oficial da escola por cima do que pareciam ser roupas de banho. Seu cabelo negro estava preso bem firme à um coque, e seus olhos rasgados estavam contorcidos na costumeira carranca severa.
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- Até que fim as primeira mocinha chegou para a aula - disse a Treinadora, me olhando como se fosse capaz de me fulminar vivo - Ande, vá se vestir... Hoje a aula vai ser na piscina!
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- Na.. na piscina? - gaguejei, sentindo o sangue se concentrar furiosamente nas minhas bochechas.
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- E você por acaso é surdo? - resmungou Kara.
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Sem pensar duas vezes, fiz o que a treinadora havia pedido. Esta era a exata reação de qualquer um depois de se encontrar com a professora de Ed. Física. Sinceramente, eu achava que ela teria se dado muito melhor seguindo carreira em algum lugar mais rígido, tipo o Exército... mas é claro que não tinha intenção alguma de compartilhar esta minha opinião com a Professora.
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Com relutância, troquei o paletó vermelho pelos trajes de banho da mesma cor, corando furiosamente só de imaginar alguém me vendo vestindo estas coisas - o que me lembrava que este era um dos motivos que não me faziam gostar da aula: o uniforme.
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Nem tanto o tradicional - feito para as atividades na área poliesportiva - e sim o traje de banho. Ele é vergonhoso, é sério. Toda vez que éramos obrigado a vestir estas ridículas sungas junto com a camisa regata cor-de-tomate, as garotas se acotovelavam aos montes na porta do vestiário para conferir nossas... habilidades. E quando digo conferir, estou falando em conferir mesmo - sem pudor algum, e com direito a comentários.
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Arrepiado só de imaginar passar por esta situação novamente, corri para a beira da piscina, tentando esperar com paciência a hora que a aula iria começar. Só então percebi que o meu desconforto era cada vez mais palpável. A cada olhar que a Treinadora Kara lançava em minha direção, era um gemido que eu produzia.
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Depois de mais cinco minutos, a turma se encontrava pronta e em formação diante da Treinadora. Ela caminhava imperiosamente a nossa frente, como um General em revista às tropas. Seu andar era firme e duro, e eu podia jurar que a cada passo que ela dava no piso de mármore, as águas na beira da piscina tremeluziam.
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- Ora, ora, ora... se não é a minha adorável turma de formandos - a Treinadora Kara parou diante de nós, com uma inegável expressão de satisfação sádica. Seus olhos faíscavam de uma maneira sombria, e ela parecia pronta para nos inflingir uma longa seção de dores e terror.
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Porém, antes dela poder continuar com seu terrorismo psicológico, as portas do ginásio aquático foram abertas tão inesperadamente que surpreendeu não só a professora como também toda a classe.
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- Diretor Nigro!!! - exclamou a Treinadora, enquanto admirava estarrecida a figura leonina que invadia o pavilhão - Que visita inesperada... Como posso ajudá-lo?
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Com um leve sorriso, o administrador se aproximou de onde estávamos e abrangeu a todos com um balançar de cabeça que pretendia ser paternal.
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- Ora, minha doce Kara, não se preocupe com nada... - pigarreou o diretor com uma piscadela marota - Não estou aqui para inspecionar suas aulas. Para falar a verdade, só estava apresentendo o maravilhoso campus da Constantine para a nossa mais nova aquisição escolar!
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Ainda sorridente, o homem se virou e fez um pequeno sinal para a sombra escura que o esperava na porta do ginásio. De início, eu não podia dizer quem era. Tudo o que eu via era uma forma alta e magra recortada contra o sol da manhã, que parecia não estar muito animada em se aproximar do nosso grupo. Mas, depois que o diretor se mexeu novamente e encorajou a pessoa a chegar mais perto, eu pude reconhecer o novato sem nem olhar para o seu rosto.
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Líon, que já usava os trajes de banho vermelho-tomate, caminhou incomodamente até parar entre a treinadora e o administrador da escola. O constrangimento parecia estar estampado na face do garoto, e como se pudesse ser possível, sua pele castanha parecia estar mais pálida do que o normal.
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- Treinadora... formandos... gostaria que vocês conhecessem e cumprimentassem nosso jovem companheiro, Líon Biel!
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Sem disfarçar o movimento, o Dir. Nigro empurrou o garoto para o centro do círculo formado, numa tentativa mais do que furada de fazer o novato se enturmar com os novos colegas de classe. Sem saber o que fazer diante da situação, Líon reuniu toda a coragem que tinha, se empertigou e tentou lançar um ''positivo'' para a turma a sua volta - mas tudo o que conseguiu foi um olhar carrancudo de Oliver e uma ''conferida'' de cima à baixo das garotas mais próximas.
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Percebendo tardiamente que não tinha como a cena melhorar, e que o estrago estava mais do que feito, o administrador abrangeu novamente a turma com o olhar e começou a recuar lentamente do grupo.
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- Bom, Kara, pelo visto o meu trabalho por aqui já está feito! - comunicou o diretor, o rosto púrpura como uma beterraba - Acho que nos veremos na Sala Reservada  durante o intervalo, não? - sem nem esperar por uma resposta para a pergunta, o homem acenou uma última vez para a professora e virou-se sem cerimônia alguma para tomar o caminho de volta para a saída do ginásio, o andar tão apressado que mais parecia que ele queria fugir do local o mais rápido que podia.
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No instante em que a porta de metal se fechou novamente, a Treinadora Kara voltou a sua atenção para a classe com força total, o seu ''olhar assasino'' mais poderoso do que nunca.
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O novato, que ainda não havia sentido a áurea letal que emanava da professora, tremeu ligeiramente da cabeça aos pés - acompanhado por todos os alunos, que pareciam ter prendido a respiração ao mesmo tempo, como se pudessem pressentir o que a mente engenhosa da professora poderia estar maquinando.
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-Como vocês devem saber - prosseguiu a Treinadora - na minha matéria, o primeiro bloco do último semestre dos formandos da Academia Constantine é dedicado para as atividades aquáticas.
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''Atividades Aquáticas''. Não sabia bem o por quê, mas eu não havia gostado nem um pouco do tom que a professora usou para falar esta frase. Era quase como um agouro... como se algo realmente ruim nos esperasse na piscina. Besteira, pensei, enquanto sacudia a cabeça e continuava a ouvir o que ela dizia.
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- E já que posso ver que vocês estão devidamente preparados - ela inclinou-se brevemente para Líon, um sorriso maligno iluminando seu rosto oriental - acho que posso revelar que nossa primeira modalidade será: O Salto em Altura!
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Como esperado, a turma inteira se encolheu diante da ''novidade'' da professora. Salto em Altura? No que ela estava pensando? Posso afirmar com segurança que nenhum de nós - incluindo eu - nunca havíamos pulado de lugar algum. Quanto mais de uma plataforma de concreto gigante à beira de uma piscina não tão funda.
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- Hei, por que estas carinhas tão preocupadas? - perguntou a Treinadora, com uma risada cristalina - Eu vou chamar um nome de cada vez, e aí, vocês só terão que subir na plataforma e saltarem para água!
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Uau, ela falando desse jeito fazia parecer tão simples... uma pena que não era.
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- Hum, Treinadora? - Oliver se destacou do grupo, seus ombros rígidos denunciando o temor que ele tentava ocultar - Nós vamos ganhar algum... sei lá... bônus por tarefa concluída?
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-Bônus? - resmungou Kara, o rosto fechado - Superar os próprios medos já vai ser um bônus e tanto. Andem, formem uma fila descente!
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Sem perder tempo, formamos uma fila única e por tamanho diante da plataforma. A treinadora Kara se postou próxima a escada que levava ao topo da área de salto, seus olhos varrendo a longa lista com os nossos nome, o papel preso à uma prancheta vermelha com o símbolo da Academia Constantine.
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Depois de um tempo concentrada, ela ergueu os olhos da listagem e anunciou o primeiro nome que iria se destacar do grupo e realizaria a tarefa:
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- Amanda Vixen!
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Amanda, uma garota baixa e magricela, saiu logo da frente da fila e subiu na plataforma. Todos, até mesmo Oliver, pareciam apreensivos diante do que estava por vir. Sem se abalar, ela se posicionou à beirada do declive, ergueu os braços esguios e pulou.
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Durante o pequeno tempo em que o corpo frágil da veterana esteve no ar, a turma inteira prendeu a respiração. Só após que a cabeleira ruiva se destacou das bolhas produzidas na água foi que o grupo se permitiu relaxar, e os amigos mais chegados da garota esgueiraram para a beira da piscina e à ajudaram a sair de lá.
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- Ora, até parece que foi a coisa mais difícil do mundo! - retrucou Oliver para os seus seguidores, a voz abafada pelo barulho dos aplausos da turma.
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- Muito bom, jovem Nigro... - a treinadora Kara riscou o nome de Amanda da lista e virou-se para encarar o filho do diretor - Isto mostra que o senhor deve estar querendo ser o segundo candidato à enfrentar nossa pequena prova, não?
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Oliver congelou no lugar. Estava claro que o seu comentário não significava nada além de pura inveja. Mas como a professora poderia ser tudo, menos injusta, era óbvio que ele agora se via obrigado a se apresentar realmente como segundo candidato para saltar.
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Reunindo toda a dignidade que podia, Oliver se encaminhou para a plataforma, seu olhar distante só ressaltando seu arrependimento por ter falado na hora errada. Com um ligeiro aceno de cabeça, ele se curvou e saltou para o fundo da piscina.
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Confesso que por um milésimo, eu fiquei um tanto preocupado com a segurança física dele. Mas logo depois que o vi se erguer na beirada mais distante do tanque, com seu habitual sorriso presunçoso no rosto, qualquer traço de solidariedade que eu podia ter sentido por ele se esvaiu pelo ralo mais próximo – literalmente.
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- Eu disse que não era nada! - Oliver se vangloriou, retirando o cabelo ensopado da frente de seus olhos, ao mesmo tempo em que exibia-se para as garotas da classe.
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Mais três alunos - mais três saltos. Com o passar do tempo, pude perceber que a tarefa não era tão assustadora quanto eu imaginava.
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Era difícil, sim, mas não impossível.
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Cada vez mais nomes eram chamados e, aos poucos, a fila diminuía. Sentia que o momento em que eu seria chamado estava se aproximando e, por mais envergonhado que estivesse, estava pensando seriamente se não apelaria para uns de meus dons. Sim, eu sabia muito bem que era errado - uma trapaça - mas na verdade, estava começando a ficar cansado de fingir ser um ''garoto tapado''.
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A treinadora Kara terminou de cumprimentar Daniel Maltha por seu salto espetacular e voltou a sua atenção para a prancheta. Fiquei parado, a determinação em pessoa, esperando escutar o meu nome se anunciado em voz alta. Mas não foi isso que aconteceu. A professora levantou a cabeça, inspirou rapidamente e chamou: Líon Biel.
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Foi inesperado. Líon piscou umas duas vezes até perceber que era ele quem iria saltar. Sem acreditar, o novato olhou para todos ao seu redor, uma súplica silenciosa por ajuda desfigurando-lhe o rosto. Tentei fazer uma careta encorajadora, mas só o que consegui foi parecer estar em choque. Desarmado, o rapaz caminhou lentamente para a plataforma, os ombros caídos e o ânimo no chão. A cada degrau que ele subia, a pouca cor que ele tinha se desvanecia aos poucos.
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Assim que o rapaz chegou ao topo da plataforma, sentí um calafrio estranho. Não era igual a nenhuma sensação que eu havia sentido antes: era pior. Como um cântico agourento, o medo chegou e me pegou, engolfando-me em uma neblina cinza e gélida. O terror acelerou as batidas de meu coração, e as sombras no ginásio se atenuaram, transformando-se em formas estranhas e tenebrosas na parede.
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''Droga, o que está acontecendo?'', me perguntei, sentindo o pânico correr pelas minhas veias. Sacudi vigorosamente a minha cabeça, numa fraca tentativa de recuperar a pouca sanidade que tinha. Minha visão estava turva, a audição abafada, e o estranho palpitar no meu peito parecia me puxar até o topo da plataforma, onde Líon se preparava para pular.
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Sem me dar conta do que estava fazendo, olhei na direção do novato, procurando pelo sinal que o meu corpo emitia... Foi neste momento que eu o vi.
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Para meu espanto, Líon não estava sozinho na plataforma. Logo atrás dele - parado com um olhar maligno - havia um rapaz alto e forte, de cabelos tão vermelhos quanto o fogo. Ele não usava nada além de uma calça comprida de brim preta, e eu não sabia o por que, mas ele me parecia terrivelmente familiar.
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De início eu não conseguia encontrar uma razão para aquele cara estar parado junto com o novato em cima da plataforma. Mas, antes que eu pudesse fazer alguma coisa, a minha ficha finalmente caiu.
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No exato momento em que Líon tencionava os joelhos, na beira da grande murada, o estranho se aproximou e - com uma satisfação sombria - empurrou o garoto da beirada da plataforma... fazendo o corpo do novato se precipitar e cair erroneamente em direção à piscina.
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Sem pensar em nada, me libertei da força que me pregava ao chão, e corri o mais rápido que pude. Para meu desespero, ví o rapaz girar pelo ar como uma gigantesca boneca de pano, suas mãos e seus braços balançado estranhamente em volta do corpo.
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Me joguei na piscina ao mesmo tempo em que escutava o som aterrador do choque de Líon com a massa de água gelada. Com um forte arrepio na espinha, prendi a respiração e senti o impacto do meu próprio mergulho sobre a pele.
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Quando abri os olhos, tudo em minha volta era de um azul celeste, surreal. Mergulhei mais à fundo na piscina, as bolhas produzidas pelos meus movimentos atrapalhando a minha busca. Foi então que o vi - esparramado no chão do tanque, o rosto sereno como se dormisse dentro da água.
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Foi assustador o ver ali imóvel, seus cabelos revoltos contra a água, sua cabeça balançando preguiçosamente sobre o pescoço. Era como uma ação sobrenatural - uma aparição produzida especialmente para me aterrorizar.
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Com mais duas braçadas, cheguei perto o suficiente para poder ergue-lo com minhas mãos. Ao tocar o seu pulso, percebi que os batimentos de Líon ficavam mais lentos e sua pele mais fria. Não perdendo tempo, o puxei com toda a determinação, lutando internamente contra a sensação de derrota que me consumia.
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Depois de abraçá-lo pela cintura, nadei com todas as minhas forças para a superfície. Antes de chegar ao topo, eu já podia ver os rostos da Treinadora Kara e dos outros alunos debruçados na margem da piscina, a preocupação e o medo visíveis - mesmo com o rodopiar da espuma à minha frente.
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Antes do esperado, a luz artificial do Pavilhão cegou os meus olhos e uma algazarra de sons incompreensíveis tapou os meus ouvidos. Incontáveis pares de mãos içaram o meu corpo e o de Líon para fora do tanque, me fazendo expelir ruidosamente todo o ar que havia prendido durante o tempo em que ficara de baixo d'água - e me despertando por completo to torpor momentâneo no qual estava envolvido.
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Sem paciência, escapei rapidamente do grupo que se inclinava sobre mim e me arrastei para o lugar onde Líon recebia os devidos cuidados.
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- Ele está bem? - perguntei à professora, minha garganta seca como se estivesse sendo consumida por chamas.
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- Eu não sei explicar - sussurrou a Treinadora Kara, examinando o pulso do novato com uma expressão de angústia.
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Com o coração na mão, me levantei e procupei pelo estranho que havia empurrado Líon da plataforma contra a piscina. Girei o meu corpo em todas as direções, tentando encontrá-lo aonde quer que estivesse, mas tudo o que via era a carranca preocupada dos meus companheiros de classe.
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Completamente vencido, praguejei uma maldição para mim mesmo e me sentei novamente ao lado do garoto. Seu rosto continuava com uma cor pálida estranha, e seus olhos fechados eram como cadeados de um diário secreto. Eu não podia imaginar quem poeria querer o mal dele, mas qual fosse a identidade do estranho, eu iria encontrá-lo.
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Para mim, aquilo não havia terminado. De uma forma ou de outra, eu iria encontrar o responsável por toda aquela confusão... E eu nem podia imaginar quão certo estava sobre isso.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Capítulo 2 - Novato

Naquela manhã, antes mesmo do despertador tocar, eu já estava acordado - o que não era nada bom, levando-se em conta de que eu havia tido apenas 4 horas de sono na noite anterior.
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Durante algum tempo, tudo o que eu fiz foi ficar deitado em minha cama, observando o teto escuro do quarto ir clareando aos poucos com as primeiras luzes do dia, pedindo secretamente que o sol não chegasse.
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Como consequência da minha ''pequena'' vigília por respostas, meu organismo cobrava à juros altos as horas de sono desperdiçadas. Cada centímetro do meu corpo parecia arder em chamas, minhas pernas pesavam mais que um saco de concreto e eu tinha a estranha sensação de que minha cabeça estava a ponto de explodir. Isso, sem falar no vazio que se apoderava de mim.
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Por mais cansado que estivesse, nada parecia ser capaz de tirar da minha cabeça a terrível imagem do ser no meu sonho. O sorriso maligno, o olhar feroz... tudo tinha sido tão real, tão assustador, que por mais que eu tentasse esquecer, aquilo não saia da minha mente.
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''Você está começando a ficar neurótico'', disse para mim mesmo.
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O que não deixava de ser verdade. Simplesmente tinha perdido as contas de quantas vezes, nas últimas horas, eu havia me sobressaltado com o mínimo ruído. Qualquer coisa naquele momento, desde uma buzina de carro até a minha própria sombra, parecia ter o poder de me assustar.
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Após meia hora de pura apatia, tomei coragem suficiente para me levantar. Enquanto caminhava sem pressa em direção ao armário, repassava mentalmente os acontecimentos do último pesadelo. Não sabia como, mas tinha a impressão de que me esquecia de um detalhe, algo além da aparência do antagonista. Era estranho, pois só agora percebia que eu nunca me lembrava do sonho em si, apenas o momento em que o ser surgia diante de mim. O momento que me fazia acordar assustado.
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- Já está de pé? - perguntou uma voz masculina, bem atrás de onde eu estava.
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Meu coração quase saltou pela boca. Ao virar, me deparo com meu pai, desta vez com seus cabelos negros perfeitamente arrumados, vestido por completo com seu uniforme de trabalho. Cirus era chefe da Brigada de Paramédicos de Ventura, o que era bastante irônico, se considerarmos o que ele secretamente podia ver e fazer.
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-Meu Deus, o que está acontecendo?
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-Não foi nada. Só levei um susto com o senhor...
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-Anh?! - Depois de um segundo de incompreensão, o rosto de Cirus se contorceu em uma careta de preocupação. - Ariel, por que você não me conta logo sobre o que é esse seus sonhos?
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Sem dizer mais nada, peguei o uniforme horroroso da Constantine e comecei a trocar de roupa. Não estava preparado, nem com a mínima vontade de discutir sobre aquilo com meu pai. E pelo visto, ele também percebera isso, pois no instante seguinte, não estava mais no meu quarto.
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Depois de uma rápida passada no banheiro, onde tentei (sem sucesso) me afogar na pia, resolvi ir tomar café. Desci rapidamente pelo poste de emergência, e corri em direção a cozinha. Este era um dos detalhes que me fazia gostar tanto da minha casa. Antes de meu pai e eu morarmos aqui, o prédio era na verdade a antiga sede do Corpo de Bombeiros da cidade. Quando viemos para cá, Cirus reformou o lugar todo, mas manteve algumas características como a faixada, o poste e o sino de alerta.
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Nossa, não está no gibi o quanto que meu pai teve que usar o sino para me obrigar a ir para escola, quando eu era menor.
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Ao chegar na cozinha, percebi que Cirus já estava terminando de comer. Sua testa estava frizada, enquanto lia com uma estranha concentração as manchetes do jornal em suas mãos. Outra coisa que também vi foi que ele me olhou brevemente por sobre as folhas abertas, e aquele era um claro sinal de que algo que eu fiz o incomodava - e muito.
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Obviamente, o meu silêncio sobre o pesadelo estava começando a irritá-lo. Mas, por mais que eu quisesse ajuda para desvendá-lo, falar com mais alguém significava que havia uma possibilidade de tudo aquilo ser verdade... E no fundo, não era bem isso o que eu queria.
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Após meio minuto de um silêncio constrangedor, resolvi quebrar o gelo.
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- Hum, muita notícia ruim hoje?
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- Não, nada grave - murmurou Cirus, olhando-me novamente por sobre o jornal - Só a coclusão das investigações daquele acidente do mês passado, envolvendo adolescentes em Dumont...
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- Ah, sim! - respondi, tentando demonstrar interesse. Do lado de fora do periódico eu podia ver a manchete da matéria encabeçando uma grande foto de um dos envolvido, um rapaz ruivo e simpático, que deveria ter no mínimo a minha idade quando a imagem fora tirada. Não sabendo o por que, aquilo me fez tremer ligeiramente... e me obrigou a continuar perguntando - Mas então, já sabem o resultado de tudo?
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- O de maior estava alcolizado, é claro... - resmungou meu pai, ainda sem tirar os olhos do papel - Pelo o que a polícia apurou, na velocidade em que o garoto vinha, os passageiros do táxi atingido tiveram muita sorte de terem conseguido sair dessa sem um arranhão.
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A resposta fria e direta de Cirus me fez encolher aos poucos na cadeira. Estava bastante nítido que o assunto macarbro não ajudava em nada no desenrrolar da coisa.
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E, é claro, eu não podia deixar o barco continuar por aquele rio.
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- Me desculpe pai! - explodi, sem um pingo de coragem para encará-lo -Tudo bem, eu sei que eu errei, mas eu sinto que ainda não estou pronto...
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- Claro, claro - com um movimento longo, Cirus devolveu o jornal à mesa e passou a mão sobre seus cabelos, seu rosto demonstrando pura frustração - É só que... eu quero que você saiba que pode contar comigo! Pra qualquer coisa!
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- É claro que eu sei que posso contar com o senhor pra qualquer coisa - resmunguei, começando a sentir o sangue fluir sobre a minha face - além do mais, quem acreditaria em mim se eu dissesse o que eu vejo, na verdade? Estamos condenados a morar juntos pelo resto de nossas vidas.
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Por um breve instante, pude ver a expressão de Cirus se descontrair e a sua risada gutural começar a ser formar no fundo do seu peito. Quando ela finalmente atingiu a superfície, toda a tensão que parecia pairar sobre as nossas cabeças veio abaixo, como se as gargalhadas produzidas pelo meu pai fossem a única coisa capaz de expulsá-la. E aquilo me contagiou também. Sem perceber, eu já estava caindo de rir, as lágrimas incontroláveis rolando pelas minhas bochechas.
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- Nossa garoto, ... esse seu... ''otimismo''... é um verdadeiro estimulante - gorgolejava Cirus, enquanto enxugava os cantos de seus olhos com os punhos da camisa - Devia usá-lo em sua escola.
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- Escola?! - perguntei aéreo, olhando por puro instinto para o grande relógio sob o batente da cozinha - Droga, perdi a hora!
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- Pode deixar... - Cirus gritava para mim, enquanto voava de volta para o meu quarto para pegar o casaco e o material - ... eu te levo até lá antes de terminar a palavra ''atrasado''.
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Dito e feito. Foi só eu meu encostar no banco do carona de nosso velho Mustang 64, que me pai disparou pela rua como um louco alucinado, os pneus do carro chiando perigosamente contra o asfalto. E assim como prometera, antes que eu pudesse soletrar qualquer coisa, estávamos derrapando em frente ao portão principal da Academia Constantine.
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Confesso que, mesmo depois de todos esses anos, eu não conseguia me acostumar ao jeito ''rebelde'' que Cirus dirigia. Muita das vezes, em situações iguais a esta, eu me via como o pai racional e ele como o filho cabeça dura.
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- Destino final!
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Com uma piscadela marota, Cirus puxou o freio de mão e abriu a porta do carona, seu típico meio sorriso a estampar suas feições. Ele nem parecia abalado por ter quase atingido um lampião de rua com a traseira do Mustang, e nem um pouco culpado por ter ultrapassado o limite de velocidade em uma área escolar - algo bem diferente de mim.
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Eu precisei de uns dois minutos para me recuperar, murmurar um fraco ''obrigado'' e sair do automóvel. Assim que coloquei os pés na calçada, o Mustang avermelhado acelerou e partiu, se transformando em um borrão até desaparecer na esquina.
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- Tchau pra você também - falei, enquanto fechava o meu agasalho e seguia na direção do antigo prédio a minha frente.
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Era mais uma manhã fria como de costume, mas diferente do que se pode esperar, o céu estava claro e azul, pontuado por gigantescas nuvens repolhudas. A fraca claridade produzida pelo sol dava a Ventura um colorido estranho, como se a cidade toda fosse uma enorme aquarela viva. A beleza da Primavera combinada com o clima do Inverno, perdurando durante todo o ano.
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Mas nem a paisagem mais bela do mundo poderia me fazer esquecer do horror que teria que enfrentar durante metade do meu dia.
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Assim que me aproximei dos portões da escola, avistei a pessoa que eu menos queria encontrar logo pela manhã: Oliver Nigro, rodeado por seus asseclas, encostados preguiçosamente no corrimão da escadaria de entrada, enquanto exibiam para todos os seus agasalhos caros por sobre o paletó vermelho da Constantine.
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Oliver, único filho do Diretor Nigro, sempre se achou o dono da escola. O pior, parecia que a maioria dos alunos também achava. Desde pequeno, ele parecia ter me escolhido como seu ''saco de pancadas'' preferido, me constrangendo na frente dos outros e me extorquindo pelos cantos, sempre ladeado por seus amigos mais intimidadores. É claro que, se eu quisesse, já teria dado um fim nesta situação a muito tempo...
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Mas o que aconteceria se eu, finalmente, desse o troco em Oliver?
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Sem sombra de dúvidas, era uma idéia tentadora, mas não seria nada ''legal'' de se ver. Então, tudo o que eu podia fazer era abaixar a cabeça e aturar tudo calado, como um bom garoto. E Deus sabe o quanto eu tive que me controlar para não perder a controle e fazer uma besteira.
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Seguindo a risca o meu plano de passar o último semestre na escola da forma mais indolor o possível, evitei de passar na frente do ''Sr. Meu Cabelo Loiro-brilhante é Natural'' e me encostei no tronco de uma árvore próxima. Ainda faltavam três minutos para a sineta tocar, e cada vez mais a calçada frontal da escola se enchia de alunos e professores esperando o começo das aulas.
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Foi quando o que ninguém esperava aconteceu.
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Cruzando a rua em direção ao pátio da Constantine, um garoto nunca visto antes seguia lentamente na direção de Oliver e seu grupo. Era um tipo que, só de olhar, você sabia que não tinha nascido na cidade, e era o único em toda a quadra que usava um par de tênis Converse ao invés dos sapatos antiquados do uniforme.
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O rapaz era alto e magricela, sua cabeleira lanzuda caía desgrenhada sobre a testa e sua pele morena tinha um tom pálido doentio, como se não tomasse um banho de sol à tempos. Não fazia o tipo das pessoas que andavam com Oliver, isso eu tinha certeza. Mas não havia uma alma viva que eu conhecia que se aproximava dos Privilegiados sem ser convidado.
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Além de todos esses detalhes, parecia que eu conhecia o novato de algum lugar. E, não sabendo bem o por quê, aquilo chamou minha atenção. Acho que foi a ousadia do garoto, ou o espanto de Oliver ao vê-lo se aproximando, mas de uma forma ou de outra, eu precisava saber o que aconteceria.
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Sabe, eu podia reclamar bastante desta coisa de ser um Arcano - tenho os meus motivos! Mas quando eu precisava, ter nascido com isto realmente era uma mão na roda. Hoje é um exemplo. Se eu fosse um garoto normal, não poderia escutar nada: a barulheira juvenil de pré-aula era quase ensurdecedora. Mas como eu não era, tudo o que eu tinha a fazer era me concentrar e localizar o ponto onde o som ao qual eu estava procurando era produzido e ''voilá''.
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E foi o que eu fiz.
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O estranho se aproximou tão rápido de Oliver que eu quase perdi o começo da conversa. Pelo visto, aquele era o primeiro dia de aula para o rapaz, e tudo o que ele estava fazendo era pedir ajuda para o primeiro veterano que encontrava - que por acaso era O Veterano. Um engano fatal.
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- Vocês está me perguntando aonde é a secretaria? - perguntou Oliver, a voz carregada de irônia e falsa surpresa - Vem cá, está me achando com cara de Balcão de Informações?
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Os Privilegiados caíram na gargalhada. Alguns soltavam piadinhas ofensivas para o novato. A maioria das pessoas que estavam perto da escada pareciam ter parado para ver Oliver se fartar com a sua mais nova vítima. Porém, novamente contrariando a lógica local, o rapaz também ria com a situação.
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- Ai, Droga! Mil desculpas - murmurou o estranho, com uma voz que indicava nenhum tipo de arrependimento - é sério, como eu pude ser tão estúpido e não reconhecer vocês?
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Subitamente, as risadinhas pararam.
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- Ah, por favor, poderiam me dar um autógrafo?
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- Um...um autógrafo?! - gaguejou Oliver, desta vez realmente surpreso.
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-Mas é claro! - exclamou o novato, um sorriso brilhante iluminando seu rosto - Sabe, eu achava que esta história era puro clichê de filme adolescente, mas conhecer o Rei do Baile Sem Coração e os seus Capangas Descerebrados em carne e osso realmente é uma honra!
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No mesmo instante Oliver se levantou, o punho preparado para desferir o golpe. E no mesmo instante, o Diretor Nigro apareceu no topo da escadaria, salvando o novo aluno com um ''timing'' que ele nunca teve com nenhuma outra vítima de seu filho.
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- Líon, aí está você, meu rapaz! - exclamou o Diretor, abrindo os braços na direção do jovem - Pelo visto, já está se enturmando! Não é mesmo, Oli?
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Tive que me controlar para abafar o meu riso.
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Era óbvio que Oliver e o garoto chamado Líon nunca seriam amigos. E mais óbvio ainda era a patética tentativa do Dir. Nigro de parecer simpático ao aluno. Ele não era simpático. Pelo contrário, parecia haver uma competição entre ele e o filho para saber quem conseguia ser mais intragável. Só podia haver um motivo para essa repentina mudança de personalidade, e qualquer que fosse, não deveria ser nem um pouco nobre.
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- Venha, eu mesmo irei apresentar as instalações da Constantine para você... Ou prefere que o meu filho o guie?
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Durante um milésimo de segundo, pude ver a hesitação iluminar os olhos castanhos de Líon. Eu compreendia bastante. O Dir. Nigro não era exatamente o tipo de pessoa que você confiava a primeira vista. Seus cabelos grisalhos, a barba por fazer, as feições leoninas - todo o conjunto parecia refletir uma esperteza com um quê de maligna. Porém, por mais suspeita que fosse a impressão que o Diretor estava causando, qualquer coisa no momento seria melhor do que a fúria invisível que Oliver emanava.
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Sem escolha, Líon subiu rapidamente a escadaria e se postou diante do administrador geral da Academia.
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- Muito Bem - Com um gesto largo, o homem enlaçou os ombros do rapaz, o conduzindo de uma forma imperiosa para dentro do prédio ainda vazio - Então, como está se sentindo? Onde está a sua irmã?
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-Serina não pode vir hoje - respondeu Líon, o desconforto transparente em sua voz - Acho que ela acordou pouco disposta.
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Com um leve aceno de compreensão, o Dir. Nigro indicou o caminho à frente e levou o garoto para longe de todos.
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Quando voltei a minha atenção para Oliver, ele continuava parado no mesmo lugar - chocado pelo comportamento do pai, enraivecido pela perda de sua primeira presa. Só depois de um cutucão de um dos amigos brutamontes ele pareceu voltar a si, justo quando eu me recuperava de um ataque de riso que acabava de ter.
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- Está sorrindo por quê, Mestre dos Esquisitos?
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A sineta impediu a resposta mal criada que eu estava prestes a dar. Mas não me importava. De uma forma inesperada, aquele meu último semestre na Academia Constantine prometia.

sábado, 3 de outubro de 2009

Capítulo 1 - O Sonho

Acordei completamente assustado.
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Minha camisa estava encharcada de suor e o meu coração martelava desvairado contra o peito. Mesmo estando na segurança de minha cama, sentia como se o pesadelo ainda não tivesse acabado... como se o ser produzido pelo meu subconsciente pudesse estar ali, escondido nas sombras da madrugada, só esperando para me atacar.
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Fechei os olhos novamente e procurei respirar fundo.
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Eu sabia que estava sendo irracional. Tudo aquilo não passava de um sonho; um sonho aterrorizante que - noite sim, noite não - povoava os meus pensamentos há mais de um mês.
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Um minuto após o meu despertar, a porta do quarto foi aberta com energia - e sob a luz fraca do corredor achava-se um homem alto e esguio, seus cabelos escuros emaranhados de uma forma estranha no topo de sua cabeça, o rosto magro e bonito deformado em uma careta dura de preocupação.
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-Adrian, o que aconteceu... você está bem?
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-Estou sim, pai - murmurei, sentido o sangue se concentrar em minhas bochechas - Foi só um maldito pesadelo...
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-Ah, claro! - no mesmo instante, a face de Cirus se descontraiu - Nossa garoto, você me assustou!!!
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- Desculpe.
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Isto era tudo o que eu podia falar sem entregar o medo que me consumia por dentro. Mas no segundo seguinte, uma intuição estranha se apoderou de mim, fazendo minhas bochechas ficarem ainda mais vermelhas .
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-Pai, por acaso eu não gritei... gritei?
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Sem se deter em meus olhos, Cirus se aproximou de onde eu estava e, com um longo suspiro, confirmou as minhas suspeitas.
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-Ai meu Deus! - me encolhi, completamente envergonhado - Me desculpe, é sério.
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- Mas o que é isso, Adrian? - perguntou meu pai, uma de suas sobrancelhas erguida de incredulidade - Você sabe que não tem pelo o que se desculpar!
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Mas é claro que eu tinha. Afinal, se não fossem por minhas ''particularidades'', talvez aquele sonho fosse menos assustador - talvez eu nem tivesse esse tipo de sonho.
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Percebendo a minha expressão preocupada, Cirus se sentou na beirada de minha cama, erguendo sua mão direita e a colocando sobre um dos meus ombros.
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-Você não está se martirizando de novo, está? - instigou ele, um dos cantos de sua boca se curvando em um meio sorriso - Por que se estiver, sabe que esta situação não exige tanta atenção quanto você imagina.
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-Não exige? - me ouvir dizer com a voz estrangulada.
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- É claro que não - respondeu ele simplesmente - Não precisa ter vergonha de seus medos, filho. Isso é tão normal quanto respirar...
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-Humpf ! - bufei indignado, antes mesmo dele completar o discurso.
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Normal? Ele só podia estar brincando.
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- Hei, não vamos discutir, está bem?- Cirus arfou, a indignação transparente em seus olhos cinzentos - Sabe muito bem o que penso sobre isso... E além do mais, é de conhecimento de todos a sua leve tendência a exagerar tudo o que acontece.
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-''Leve tendência a exagerar tudo o que acontece''! - repeti, não acreditando no que havia acabado de escutar. Ele só podia achar que eu tinha a personalidade de uma garota mimada de 12 anos - Bom pai, acho que está na hora de voltarmos a dormir.
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-É claro que está - concordou ele, o meio sorriso voltando a estampar o seu rosto jovial - Mas antes de voltarmos a dormir, preciso perguntar uma coisa...
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Naquele pequeno segundo de antecipação, meu coração parou.
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Eu já sabia exatamente sobre o que seria a pergunta dele. Pois assim como eu, meu pai também era um Arcano... E assim como eu, ele tinha certeza que eu não acabara de ter um sonho comum.
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E era esse exatamente o problema. Ás vezes, para um Arcano, os sonhos podem dizer bastantes coisas. Coisas que não fomos capazes de ver durante o dia, e que a noite nosso subconsciente tentava nos alertar sobre o que estávamos deixando passar despercebido. Mas por mais que eu pensasse, nada estava me passando despercebido. A vida em Ventura continuava a mesma - pacata e sem atrativos, com cada um tentando bisbilhotar ou inventar alguma coisa sobre a vidinha monótona do outro.
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Então, por que essa droga de sonho não me deixava em paz? Será que, finalmente, a minha mente entrara em parafuso? Será que enfim estava enlouquecendo? Eu não duvidava nada. Acho que não são muitas as pessoas que podem ver as coisas que eu vejo e que continuam sãs...
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-Filho, - como uma britadera perfurando o concreto, a voz de Cirus me atingiu e me remoeu, meus vagos pensamentos se dissipando para longe de mim - afinal, que sonhos são esses que você anda tendo ultimamente? Você realmente acha que são apenas sonhos?
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Nossa, além de tudo ele foi direto no ponto!
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- Eu... eu... quero dizer, sim! - Menti, com a minha melhor cara de inocente - Pelo menos, acho que sim. Sabe como sou, provavelmente não deve ser nada demais.
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- Hum, então você deve estar certo - replicou meu pai, com um olhar que dizia ''Você é o Pior Mentiroso do Mundo''. - Acho que realmente está na hora de dormirmos; Afinal, amanhã é dia de escola, não?
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- Nossa, ótimo lembrete! - resmunguei entre os dentes.
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Sem dúvida alguma, esta deve ser a melhor maneira de se terminar um dia: acordar gritando no meio da noite devido a um pesadelo assustador e voltar a dormir pensando no ''grande'' dia que teria na Academia Constantine.
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São só mais sei meses, eu pensei. Só mais seis meses, e você vai estar livre daquele lugar!
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Bom, não era pedir muito de mim, era? Afinal, depois de Onze anos de total apatia e exclusão, esperar por apenas mais um semestre não seria nada. Acho que no fim, o purgatório até poderia ser um lugar acolhedor e com pessoas amáveis, não é mesmo?
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Tudo bem, a quem estava enganando - Não consigo mentir nem pra mim mesmo.
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- Isso aí, pensamento positivo! - Com uma última piscadela, Cirus se levantou e caminhou de volta para o seu quarto, me deixando completamente sozinho e perturbado.
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Sabe, eu gosto muito do meu pai, reconheço todo o trabalho que ele teve para me criar sozinho, mas definitivamente nós não estávamos na mesma sintonia. Isto era um fato irrefutável.
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As horas se passavam e eu não conseguia voltar a dormir. Minha cabeça estava trabalhando a mil por hora, e visões indistintas do meu pesadelo vinham a tona todas as vezes que tentava fechar os meu olhos. Já eram 1h da manhã, e a única coisa que se fixava em minha mente era que eu tinha que fazer alguma coisa.
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Com um salto, me pus de pé e fui para o banheiro.
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Ironicamente, sempre achei o banheiro um ótimo lugar para se clarear as idéias. Talvez fosse a cor, talvez fossem as luzes, quem sabe poderia ser a acústica, mas qualquer que fosse a explicação, era lá que eu encontrava as respostas para as minhas perguntas. E foi isso que eu fui fazer. Encontrar a resposta para uma pergunta que nem eu sabia qual era.
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Completamente exausto, tirei a minha roupa e me enfiei debaixo do chuveiro. Por mais gelada que estivesse a água, aquilo estava me deixando mais relaxado. Quase pude ver os meus músculos se descontraindo sob a pele e a minha pulsação acelerada se acalmar. Depois de cinco minutos, saí do box renovado. E o melhor, meu cérebro parecia estar trabalhando de uma forma tranquila, e não alucinada como estava antes da ducha.
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Sentindo-me calmo e tranquilo, me enrolei na toalha e segui em direção ao grande espelho sobre a pia. Já que estava no banheiro e sem um pingo de sono, iria aproveitar a ocasião pra fazer a droga da minha barba - o que me pouparia o trabalho na manhã seguinte, me dando mais tempo livre para ficar em casa antes de ir para a escola.
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Foi então que o meu cérebro deu um click.
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Só ao me olhar no espelho foi que me dei conta que o antagonista do meu sonho era extremamente parecida comigo. Não com a minha aparência, é claro - ela não tinha os olhos cinzentos e os cabelos escuros como eu, muito menos a minha altura ou meu porte físico de nadador. Ao contrário, o ser era comprido ao extremo, passando de longe os meus 1,80. E diferente de mim - que devido a minha condição, sou forte porém magro - cada centímetro dele parecia exalar uma força bruta e cruel, quase que invencível.
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Na verdade, o que me fez lembrar dele foi algo que me pertubou durante todo o tempo em que estive inconsciente, e só agora parecia brotar do fundo da minha mente.
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O vilão que me atacava quase todas as noites e me faziam despertar de medo era um homem... Ou, ao menos, parecia ser um.
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E era isto o que me deixava preocupado.
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Me esquecendo por completo do que iria fazer, recoloquei as minhas roupas e voltei para o meu quarto. Com um movimento rápido, abri a janela e me pus a observar a cidade.
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Tudo continuava no seu devido lugar... Ao fundo eu podia enxergar as belas colinas de Ventura recortando o horizonte, a luz da lua resplandecendo no topo das árvores mais altas; já as ruas desertas eram iluminadas apenas pelos lampiões e os antigos prédios góticos do centro estavam no escuro, sua arquitetura antiquada sempre me lembrando uma catedral gigantesca que não parava de crescer.
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Por mais calmo que parecesse a paisagem, aquela visão não me deixou nenhum pouco tranquilo. Pelo contrário, observar a cidade mergulhada no silêncio me deixou ainda mais apreensivo.
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Definitivamente, a calma que eu havia recuperado com o banho estava se esvaindo pelos meus poros pouco à pouco. Minha mente era tomada de assalto por uma enchorrada de perguntas - e as mais preocupantes pareciam grandes letreiros de néon diante de mim.
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Será que os meus sonhos estavam sendo realmente um sinal? Ou melhor, será que o ser aterrador poderia estar naquele exato momento em algum beco escuro de Ventura, oculto pela sua falsa humanidade, só esperando para atacar? Sem sombra de dúvidas eu gostaria de ter as respostas para essas perguntas, mas infelizmente não tinha.
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Então fiz a única coisa que me parecia cabível naquele hora: fechei as janelas do meu quarto, voltei para debaixo das cobertas, e obriguei o meu cérebro a se desligar de tudo e tentar dormir... De nada adiantaria eu continuar acordado, me forçando a encontrar algo que ainda estava inacessível a mim. Por enquanto, eu sabia de tudo que era para saber.