domingo, 8 de novembro de 2009

Capítulo 5 - O Anjo

Líon e eu saímos do Prédio Principal da Academia Constantine no exato momento em que o sino da torre do relógio anunciava para todo o quarteirão o começo do segundo período. O sol estava apino, mas como de costume, o vento ártico varria a rua da escola, que se encontrava deserta aquela hora do dia.
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- E então - puxei assunto, enquanto terminava de abotoar meu agasalho por cima do uniforme - você mora muito longe daqui?
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- Não muito - disse Líon - mas você não precisa realmente me levar pra casa... Eu só estava brincando.
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- Tudo bem, eu levo mesmo assim... - completei, seguindo o caminho que ele tomava - vai que você atravessa a rua sem a devida atenção e não tem niguém lá pra te salvar do atropelamento iminente?
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Olhei sarcasticamente para o novato, no mesmo instante em que ele se virava para mim e me mostrava o dedo médio - o que foi muito grosseiro, não nego, mas me fez cair na gargalhada. Afinal, mesmo quando estava aborrecido, Líon era uma pessoa fácil de se lidar. E diferente dos outros garotos de Ventura, ele não parecia esperar que eu lhe transmitisse algum tipo de vírus mortal ou qualquer coisa do tipo.
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- Bom, não pode negar que há uma possibilidade... e que seria realmente útil se houvesse alguém por perto - continuei, logo depois de ter certeza que ele parecia não estar mais irritado.
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-Sabe, você tem razão - concordou Líon de má vontade - São poucas as pessoas que tem a oportunidade de conferirem o meu ''pendor para desastres'' logo no dia em que me conhecem.
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- Então devo ficar honrado? - perguntei, a expressão sarcástica ainda em meu rosto e em minha voz.
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Só pela careta de Líon, percebi que ele estava falando sério quanto a história de ''pendor para desastres''. Sem sombra de dúvidas, eu havia encontrado um concorrente sério para o prêmio de Azarado do Ano. Tinha certeza absoluta que a má sorte dele só não era maior que a minha por um mero detalhe: Ele não tinha que se preocupar em esconder a sua peculiaridade toda vez que botava os pés na rua.
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Depois de atravessarmos duas avenidas e percorremos quatro blocos, entramos em uma rua calma e arborizada. Ela era composta basicamente de residências altas e estreitas, os jardins sem muro se resumindo a um quadrado na calçada, as casas separadas umas das outras apenas por pequenos vãos entre as paredes - assim como todas as áreas residenciais da cidade.
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Eu conhecia bem aquele lugar. Usando como referência a vista panorâmica que eu tinha do meu telhado, aquela parte de Ventura ficava atrás da minha casa, duas quadras abaixo.
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Era engraçado imaginar que, hoje pela manhã, eu não estava com a mínima vontade de ir para a escola e, agora, eu estava contando as horas para que o dia seguinte chegasse logo... Como eu imaginaria que iria conhecer o primeiro aluno decente da Constantine nos últimos segundos do segundo tempo?
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Antes do esperado, nós já havíamos chegado à casa de Líon e estávamos parados em frente à pequena escada de entrada da morada dos Biel.
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Eu estava prestes a me despedir do garoto quando algo surreal me paralisou: um vulto escuro e baixo surgiu no batente da porta, um silvo agudo escapando de suas presas à mostra. Antes que pudesse pensar em fazer alguma coisa, a sombra negra arqueou o corpo e saltou na minha direção, suas garras longas e afiadas prontas para perfurarem o meu rosto.
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Me preparei psicologicamente para sentir a dor aguda do ataque... mas não foi o que ocorreu. Com uma agilidade inesperada, Líon aparou o vulto com as mãos e o aninhou em seu colo. Foi só então que eu percebi que a coisa que havia acabado de tentar me atacar não passava de um gordo e feio gato preto de olhos amarelos.
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- Ai, ai, ai!... O que foi isso Sortudo? - Líon ralhava com o animal, mas o bichano continuava a me observar irritado - O papai já não disse que não se deve atacar às visitas?!
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- Papai? Sortudo? - eu sabia que meu rosto devia estar em choque. E o gato continuava me encarando ferozmente, os pêlos da nuca eriçados e suas pequenas presas arreganhadas como uma placa de aviso.
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- Sim, ele é meu... - respondeu o novato, ainda distraído em sua tentativa de acalmar o felino - Ganhei de presente da minha irmã Serina; uma brincadeira com toda a história da minha ''má sorte''.
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Bom, se Líon estava tentando mudar a sua fortuna, eu tinha absoluta certeza que ter um gato preto como bicho de estimação não estava ajudando muito... Não que eu não goste de gatos - pelo contrário, são eles que não gostam de mim!
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Uma vez, quando eu era menor, um gato de rua tentou arrancar os meus olhos só por que passei perto demais. Depois do episódio, meu pai me explicou que geralmente animais e insetos podiam reconhecer quando uma pessoa era completamente normal ou era ''tocada'' por algo sobrenatural. O único problema nisto estava no fato de que geralmente os gatos (assim como a maioria dos seus irmãos felinos) eram os únicos que não sabiam reconhecer quando o ''toque'' significava ser algo bom ou ruim - o que os deixam arredios e violentos sempre que se deparam com algo que não consideram natural.
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Resultado: não importa se você é um Arcano ou algo muito pior, gatos sempre irão querer acabar com a sua raça.
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Enquanto Líon tentava inutilmente acalmar os ânimos de Sortudo, resolvi admirar um pouco a faixada da casa dos Biel. Assim como os outros prédios da rua, a construção era de um tom escuro, com o telhado cor-de-chumbo em diagonal, inclinado na direção da entrada, e o canteiro ao lado da pequena escada repleto de flores coloridas. Eu não podia enxergar muita coisa do seu interior - quase todas as janelas estreitas estavam cobertas por finas camadas de cortinas de seda clara.
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Quase todas... exceto uma.
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Logo acima da entrada, uma janela se encontrava ligeiramente entreaberta. As cortinas pendiam livres atrás do vidro, formando uma pequena brecha pela qual podia-se ver o teto rebuscado de um quarto e a luminária delicada fixada no centro. Sem saber muito bem o por que, fixei o meu olhar naquela direção e não desviei mais. Parecia que uma estranha força me conduzia naquela direção, como por encanto. Não era a mesma sensação que eu sentira na piscina com o Líon... Pelo contrário, era muito melhor - simplesmente indescritível. Era como se todo o meu instinto quisesse ficar parado ali, só admirando aquele pedaço do cômodo, sem ver o tempo passar.
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E foi isto que eu fiz, por longos minutos. Parte de mim ainda podia vislumbrar a pequena luta do novato com o seu gato, e outra pequena parte parecia estar atenta ao fato de eu estar parado, com um uniforme escolar, no meio de um rua completamente estranha. Porém, toda o conjunto dominante, desde os meus nervos até a consciência, pareciam estar interligados àquela janela - como se esperassem que algo grandioso e surpreendente pudesse acontecer a qualquer instante.
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E para o meu total espanto, aconteceu.
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Detrás do véu de seda, um rosto belo e delicado como o de um anjo surgiu, observando a rua deserta. Uma longa cascata de cabelos cor-de-chocolate emolduravam a face estranhamente perfeita, sua pele castanha irradiando fracamente os raios de sol que se infiltravam para o quarto pela brecha da janela. Seus olhos escuros e intensos admiraram a rua de ponta à ponta, até que eles finalmente recaíram sobre mim - aprisionando-me por completo.
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A ligação estava feita. A garota e eu nos encaramos por um longo tempo, e eu já podia sentir no meu rosto o fluxo repentino de sangue se formando. Ela me observava com as sobrancelhas cerradas, como se tentasse me reconhecer de algum lugar - a mesma sensação que eu sentia parado na calçada. Para mim, nada ao redor importava. Tudo o que eu precisava era ficar ali, admirando aquele ser celestial à minha frente.
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Nosso pequeno momento parecia estar durando uma eternidade. A garota-com-rosto-de-anjo continuou a me olhar e eu retribuía na mesma intensidade. Após mais um minuto, ela mordeu os lábios rosados e balançou de leve a cabeça, como se tentasse força a si mesma a voltar à realidade. Com um movimento rápido, ela se levantou de onde estava e fechou as cortinas - assim quebrando bruscamente o estranho elo que havia se formado entre nós.
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Sem fôlego, fechei os olhos e também sacudi a cabeça.
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- Hei cara, você está legal? - Líon me encarava preocupado, o bichano em seu colo - apesar de ainda emanar uma áurea ameaçadora - muito mais controlado.
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Balancei afirmativamente a cabeça como resposta. As coisas ao meu redor já haviam voltado ao normal. Aquilo não devia ter passado de um breve segundo, mas para mim foi como se tivesse durado o dia inteiro. Mesmo estando ainda descomposto, meu cérebro trabalhava a uma velocidade surpreendente. Durante um breve instante para considerações, acabei concluindo o óbvio: a garota na janela só podia ser uma única pessoa - Serina, a irmã de Líon... Mas isto não explicava o por quê da sensação de eu à conhecer de algum lugar.
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- Líon, por acaso você e a sua família já vieram para Ventura alguma vez? - antes de terminar a pergunta, eu já havia me arrependido de a ter feito. Aonde eu estava com a cabeça? O que o novato ia pensar de mim?
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- Hum, não... - Líon franziu a testa com desconfiança, mais continuou - Sabe, eu gosto de brincar que somos meio ''nômades''. Eu e Serina nascemos no Rio de Janeiro, mas nós já moramos em tantos lugares que até já perdi as contas... Para ser sincero, mesmo morando em Dumont, eu não fazia a mínima idéia da existência de Ventura!
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O novato acariciou ternamente o gato em seu colo e suspirou. Estava na cara que se mudar para Ventura não havia sido nada legal para o garoto. E eu não podia muito menos culpá-lo por se sentir infeliz aqui... Afinal, eu mesmo queria meter o pé desta cidade - que apesar de linda - era recheada de pessoas falsas e interesseiras.
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- Acho que está na hora de eu entrar... - disse Líon, ainda acariciando Sortudo.
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- É, você tem razão - concordei, satisfeito por ele não ter maldado nenhum pouco a minha pergunta. - Acho que nos vemos amanhã na escola, não?
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- Com certeza! - o novato abriu um enorme sorriso, e girou lentamente em direção a porta.
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Esperei Líon entrar e trancar a porta de entrada para dar uma última olhada na janela do quarto de Serina e voltar para casa. Eu estava cansado e tinha a esquizita impressão de que minha cabeça pesava mais do que o resto do meu corpo. Flashes dos momentos na piscina e do rosto da irmã de Líon iam e vinham na minha mente, e cada músculo meu parecia estar esticado e retesado como se eu acabasse de percorrer uma maratona.
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Sem duvida alguma, aquele foi o dia mais movimentado de todos os meus 18 anos em Ventura. Eu não entendia muito bem, mas parecia que a minha vida só havia começado naquela manhã - como se todo o resto não passasse de um pesadelo, uma sombra indistinta em meus pensamentos.
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Dei uma última olhada para a casa dos Biel e virei a esquina. Por mais excitado, impressionado, desconfiado e cansado que estivesse, tudo o que eu queria naquele ponto era estar em casa - esparramado sobre o sofá da sala, aproveitando cada segundo deste meu inesperado dia de folga.

Capítulo 4 - Espelho

- Acho que devemos levá-lo para a enfermaria, não? - Alice Corvel espiava alarmada a cena por cima do braço de Daniel Maltha, as mãos apoiadas ''ingenuamente'' no ombro musculoso do rapaz.
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- Boa sugestão... - concordou a Treinadora Kara, avaliando cada aluno da turma com seus olhos puxados - Mas deve ser alguém que consiga carregar o garoto daqui até o Prédio Principal com o maior cuidado possível.
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- Eu posso levá-lo - me ofereci, mandando a cautela às favas.
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Sem esperar o concentimento da professora, me levantei em um pulo e ergui Líon como se segurasse um recém-nascido. No mesmo ritmo, me desviei das pessoas ao nosso redor e segui na direção da saída. Com um empurrão, abri uma das folhas de metal que formavam o portão do ginásio, andando tão apressado que nem parecia que carregava uma pessoa de quase 80 quilos no colo.
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Mas eu carregava. E por onde passava, as pessoas pareciam notar este pequeno detalhe também. Com um suspiro, me esforcei para fazer uma careta de cansaço enquanto atravessava às pressas o campus da escola, indo em direção à enfermaria no Prédio Principal. Isto não devia importar agora, mas por mais preocupado que estivesse com o bem estar do novato, não podia de forma alguma deixar que alguém suspeitasse de mim mais do que já era de costume.
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Mesmo com os solavancos que eu dava pelo caminho de pedra no pátio, o rapaz não se movimentava um milímetro sequer. Seus olhos continuavam cerrados melancólicamente e sua respiração ainda era pesada, como se ele se esforçasse para fazer uma tarefa tão simples. Não conseguindo mais conter a agonia, comecei a murmurar cada vez mais alto os meus pensamentos, esperando ingenuamente que aquilo ajudasse o garoto em meus braços de algum jeito.
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-Ah, vamos lá cara, reaja! - resmunguei alto, no momento em que eu entrava no corredor da enfermaria.
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- Reagir a quê? - uma voz seca me interrogou, me fazendo parar com o susto.
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Olhei abismado para o novato, não acreditando no que havia escutado. Mesmo conservando a palidez anormal e respirando com clara dificuldade, Líon parecia 100% melhor. Seus olhos, grandes e curiosos, agitavam-se em todas as direções e seus braços magros e compridos tentavam inutilmente se livrar do aperto inconsciente que eu dava, completamente estarrecido com a rápida recuperação do rapaz.
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- Hei, o que está acontecendo aqui? - perguntou Líon, a confusão estampada em seu rosto redondo.
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No mesmo instante, o prof. Novaz - responsável pela enfermaria e pela aulas de Biologia - veio correndo na minha direção já preparado, obviamente avisado por telefone pela Treinadora Kara.
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- Pode deixar, Adrian - ordenou ele, tomando o novato dos meus braços e voltando para a sala às suas costas - Eu cuidarei dele partir de agora.
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- Não, eu vou com vocês - disse em voz alta, num tom mais alto do que pretendia.
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O professor se virou brevemente e concordou com impaciência. Sentindo um estranho puxão na beirada do estômago, segui os dois pelo corredor e entrei sem cerimônias na enfermaria. A sala era branca e contava com apenas uma maca, um armário para os medicamentos e equipamentos médicos e uma pequena mesa cheia de papéis que deviam pertencer ao socorrista.
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Com uma habilidade impressionate, o jovem prof. Novaz pôs Líon cuidadosamente sobre a maca, sem demonstrar ter consciência de minha presença logo atrás dele. Em poucos minutos, o homem examinou a garganta do novato, mediu sua temperatura, verificou a pressão e escutou seus batimentos cardíacos.
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Líon observava tudo com uma feição curiosa, parecendo extremamente encantado com a situação. Nem parecia que aquele garoto havia quase partido desta para uma melhor há poucos instantes. Percebendo a minha expressão especulativa, o prof. Novaz se afastou do paciente, deu a volta na pequena enfermaria e sentou-se pesadamente na cadeira logo atrás de sua mesa.
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- Bom - suspirou ele, arrumando a papelada sob a bancada - pelo visto, toda essa confusão não passou de um susto.
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- Um susto? - Eu mais uma vez falava com o socorrista mais alto do que na verdade queria - Professor, o Líon despencou de quase oito metros de altura!
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- Eu sei muito bem d'aonde o aluno Líon caiu - o prof. Novaz pareceu encontrar um papel pelo qual estava procurando e se levantou - Mas, pelo exames preliminares, tudo indica que ele está perfeitamente bem. Agora, se vocês me permitirem, irei avisar ao responsável do jovem sobre o ocorrido...
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-Não! - Líon exclamou, a voz ainda seca, porém demonstrando estar bastante consciente da situação.
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- Não?...Mas por quê? - o professor se deteve à porta da enfermaria, fazendo uma careta de espanto à reação inesperada e exagerada do aluno-paciente.
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- É que... é que...bem - o novato ergueu-se devagar, encostando sua cabeça na parede branca e colocando suas pernas para fora da maca - Meus pais devem estar acabando de descarregar as nossas coisas na casa nova e... acabamos de chegar de Dumont...bom, não queria atrapalhar eles com uma coisa tão boba.
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O homem continuou parado, ainda sem entender aonde o rapaz queria chegar.
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- Senhor, acho que deve saber... - suplicou Líon, passando as mãos pelos cabelos molhados, o constrangimento estampado em cada gesto - Meu pai e minha mãe passaram por bastante dificuldades nesses últimos tempos... A última coisa que eu quero é estragar um raro dia de calmaria para eles com uma coisa que, segundo o senhor, nem teve tanta importância assim!
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O discurso de Líon parecia ter pego o prof. Novaz de calças curtas. Por um segundo, ele pareceu refletir sobre o que o garoto dissera - como se decifrasse uma misteriosa e difícil mensagem cifrada - até balançar molemente a sua cabeça, demonstrando ter perdido a pequena batalha mental na qual travou consigo mesmo.
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- Se é assim que você quer... - ele entrou de novo na sala, detendo-se rapidamente na sua pequena bancada - Mas você vai me prometer uma coisa: enquanto eu estiver na secretaria resolvendo alguns negócios, o senhor vai ficar aqui descansando, O.k. ?
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- Tudo bem - concordou Líon, claramente entusiasmado.
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-Hum - resmungou ele, olhando com cautela para o estranho entusiasmo do novato - Adrian - se não for pedir muito - será que poderia ficar de olho neste rapazinho para mim, por favor?
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- Sim, professor, é claro que eu fico - me prontifiquei, saindo de perto da parede e me postando perto da maca onde Líon continuava sentado.
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O prof. Novaz encarou mais uma vez o rosto abatido de Líon, viu as horas e deixou a pequena enfermaria com passos largos. Logo após, o novato levantou-se da maca e, com uma determinação assustadora, se virou na minha direção e me observou - como se os seus olhos fossem na verdade um par de detectores de mentira humano.
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- Como você fez aquilo? - ele me perguntou, sua voz ainda seca soava muito mais sinistra do que se estivesse com o seu timbre normal.
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- Fiz o quê? - devolvi com outra pergunta, sabendo exatamente sobre o quê ele estava falando. Sem mistério algum, eu podia ver a pergunta implícita bem diante de sua testa castanha: Como eu tinha conseguido salvar ele, percebendo que ele fora empurrado da plataforma, antes mesmo que qualquer outra pessoa tivesse notado o que realmente acontecera?
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Bom, na verdade, nem eu sabia. É claro que suspeitava que tivesse alguma coisa a ver com os meus dons de Arcano. Mas a questão é que nunca havia sentido nem presenciado algo como aquilo... nunca havia vivenciado uma experiência que chegasse ao menos perto daquela. Pra ser sincero, eu estava tão impressionado quanto Líon devia estar.
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E era certo que ele estava.
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Por um bom tempo ele me analisou. A sensação de ser scaneado por inteiro, provocado pelo olhar inquisidor do rapaz, permaneceu sobre mim no que me pareceu uma eternidade. No fim, Líon me libertou do estranho poder de seus olhos, parecendo - no mínimo - conformado com a minha ''não resposta''.
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- Obrigado - ele disse simplesmente.
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- Não à de quê - eu disse, só agora percebendo que havia atravessado a metade da escola com um garoto nos braços e vestido apenas com os ridículos trajes de banho vermelho-tomate.
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Parecendo entender o meu enbaraço, Líon sorriu e voltou a se sentar na maca de vinil negro. Ele arriou a cabeça e sem querer acompanhei o seu olhar pelo piso claro da enfermaria, completamente marcado por nossos pés descalços e molhados.
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- Sabe, por que você não quis realmente chamar o seu pai aqui para te ver? - me ouvi interrogando, antes mesmo de pensar em me refrear. - Você foi empurrado da plataforma! Deveriam fazer algo a respeito...
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- Acho que você - assim como metade dessa cidade - deve saber, não? - ele murmurou, os olhos ainda detidos no chão - Meu pai e minha mãe mal se recuperaram do meu último susto... Não quero que eles saibam de mais um erro meu.
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- Não foi um erro seu! - rebati, tentando descobrir o que Líon achava que eu sabia ao mesmo tempo em que me lembrava com clareza da aterradora cena da queda.
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Líon me encarou novamente, mas desta vez seu rosto não indicava que ele me avaliava - não, indicava que ele admirava o estranho fato de eu demonstrar estar preocupado com o seu bem estar, tanto físico quanto psiquíco. O que, sem sombra de dúvidas, me fez corar loucamente.
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- Cara, seus pais devem ter muito orgulho de você...
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- Meu pai - corrigi, olhando tão atentamente para o chão que podia vislumbrar as falhas nos rejuntes do piso, pedindo aos céus que ele não percebesse o quão vermelho a minha face deveria estar.
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- Droga, me desculpe - Líon se deu um forte tapa na testa, esperando que isto soasse como uma forma de punição para o seu deslize. Após um segundo, ele limpou a garganta e prosseguiu - Se bem que... hoje em dia é muito normal vermos pais separados. Em Dumont, eu tinha vários amigos na mesma situação que a sua!
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Mordi meus lábios com força, para tentar conter o riso desenfreado que surgia. Ele estava entendendo tudo errado.
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- Não Líon, meu pai não é separado... - expliquei, conseguindo tirar minha atenção da trama de rejuntes - Ele na verdade é viúvo.
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- Pausa para o momento ''me abra um buraco no chão que eu quero fugir!''- Líon deitou-se na cama com força, a mão esquerda na testa e a direita em seu pescoço, tentendo se matar de duas formas diferentes. - Deus, eu não dou uma dentro!
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Me encostei na parede e esperei o novato terminar de se auto-flagelar. No fim, ele se recompôs, respirando lentamente, e murmurando mais mil desculpas para mim.
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- Está tudo bem - respondi com sinceridade - Eu não tive muito contato com ela.
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Mais uma pausa.
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- Quando foi que ela... você sabe, se foi? - eu podia ver todo seu constrangimento por perguntar algo tão pessoal através apenas de sua expressão. - Se não quiser responder, eu entendo! - acrescentou ele de forma rápida.
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- Ela se foi assim que ela deu a luz à mim. - respondi, mesmo sabendo que não tinha nenhuma obrigação de contar aquilo a ele.
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Mas, no fundo, eu sempre quis contar aquilo - ou qualquer coisa - para alguém. E além do mais Líon foi o único, além de Cirus, a me fazer uma pergunta tão pessoal em todos esses meus dezoito anos. Acho que devia essa resposta a ele, como forma de gratidão por um momento tão incomum.
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Ficamos calados, os dois virados na direção do armário de remédios. Assim como acontecia todas as vezes que eu me recordava de minha mãe, fechei os meus olhos e tentei puxar alguma lembrança em que ela estivesse envolvida. E como sempre, só o nada preenchia a minha mente, ocupado apenas pela imagem das fotos espalhadas por nossa casa-de-bombeiros e pelo nome que eu fazia questão de não esquecer: Améliah.
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- Acredite, se sua mãe soubesse o que você fez por mim hoje, ela teria muito orgulho de você - a voz de Líon já devia estar voltando ao normal, mas ao dizer aquilo, eu podia jurar que ela havia falhado - Pode ter certeza disto.
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Antes que eu pudesse agradecer, o prof. Novaz entrou na enfermaria a passos largos, se postando mais uma vez à frente de Líon e o examinando rapidamente.
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- E agora, como você está?
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- Acho que uns 150% melhor - o rapaz encolheu os ombros, a careta de curiosidade e inocência de volta a sua face.
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- Hum, hoje realmente foi um dia difícil para você - o professor sentou-se em sua mesa, pegou um pedaço de papel com o timbre da Academia e começou a escrever - Por que nós não aproveitamos e lhe damos o dia de folga?
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Líon fitou o socorrista sem palavras. Em um pulo, ele se levantou e pegou a licença assinada pelo prof. Novaz com as mãos tremulas e uma expressão arrebatada.
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- Obrigado, obrigado, obrigado... - ele repetia enquanto me acompanhava de volta para o corredor, o rosto afogueado de adrenalina. Nós começamos a caminhar para a saída quando, num surto de inspiração, ele parou, girou nos próprios calcanhares e se inclinou de volta para a enfermaria - Anh, senhor... Posso lhe pedir um outro favor? - O rapaz se dirigiu novamente à sua bancada, a face tristonha e abatida.
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- Claro que pode - O professor fitou Líon sem entender.
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- Hum, o senhor sabe que eu não quero fazer muito alarde sobre o ''incidente da Ed. Física'' - ele revirou os olhos deliberadamente, como se o seu quase óbito estivesse em um passado bem distante - Mas eu não tenho muita certeza se consigo ir sozinho para casa...
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Parecendo cansado e distante dali, o socorrista pegou mais um papel timbrado, rabiscou de uma forma ligeira sobre ele, e depois o entregou a Líon. Com um sorriso, o aluno agradeceu a ajuda e se voltou para mim, uma brilho triunfante iluminando o seu rosto.
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- Aqui - ele me estendeu o papel, quando já estávamos de volta ao corredor - sua carta de alforria por hoje.
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Logo que eu terminei de ler o que havia escrito nele, tive que para de andar. Eu estava em choque. Não podia acreditar no que estava em minhas mãos.
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- Você arranjou para mim uma dispensa escolar? - perguntei com a voz entrecortada pela surpresa.
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- Bom, para isso, você vai ter que me levar para casa - ele levantou as mãos, como se isso pudesse ser um impasse - mas, como depois vai ter um dia inteiro de folga... Acho que estou meio que pagando a minha dívida por... bom, por tudo!
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Continuei parado no corredor, olhando do papel para Líon. Após uns segundos, o novato estalou os dedos diante de mim, olhou ao redor e disse:
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- Hei, Ariel... Acho que você não percebeu que estamos no meio do corredor, usando apenas sungas e camisetas - e daqui a pouco vai tocar o sinal!
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Sentindo um grande sorriso tomar conta do meu rosto, acompanhei o rapaz de volta para os vestiários do Pavilhão da Tortura, mais apressado do que antes.
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Mesmo usando aquela roupa ridícula, eu me sentia bem. Pois se houvessem mais pessoas como o Líon estudando na Constantine antes dele chegar, sem duvida alguma, a Academia não teria sido o lugar triste e infeliz que foi para mim nos últimos anos.