segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Capítulo 10 - Pesadelo

Mesmo sabendo que estava seguro na Casa-de-Bombeiros, meu coração continuava martelando forte contra o peito.
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Durante todo o relato do meu encontro com o demônio de Líon, meu pai e Angel não trocaram uma só palavra. Cirus, que continuava usando o seu uniforme da Brigada de Paramédicos, parecia aturdido ao escutar cada descrição minha. Já minha tia olhava para mim em um estado de choque, sua expressão mudando para a indignação assim que terminei de contar tudo o que aconteceu.
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- Eu não acredito que ele te ameaçou, veja só! Ou ele não faz a miníma idéia com quem está se metendo, ou ser um Arcano hoje em dia não deve significar mais nada...
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Ainda pensativo, Cirus se levantou da poltrona onde estava sentado e começou a andar de um lado para outro. Eu sabia muito bem o que ele estava fazendo, e também sabia que estava prestes a efrentar um longo interrogatório.
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- Você disse que o demônio controlou você e Oliver? - perguntou ele junto a mim, os braços cruzados sobre o peito e seus olhos cinzentos mais frios do que eu já havia visto até então.
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- Bom, foi mais ou menos o que ele deu a entender - repliquei, não estando tão certo sobre isto quanto antes.
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Com um balançar de cabeça, meu pai voltou ao seu percurso rotativo em meio a sala de estar, enquanto Angel se ajeitava sobre o braço do sofá em que eu estava sentado.
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- Mano, isto não faz o menor sentido! - disse ela, seus olhos azuis congelados de espanto e dúvida - Demônios Comuns não podem atuar no campo espiritual... Muito menos infligir seus poderes à um Arcano.
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- Mas é aí que está a questão - respondeu Cirus, parando novamente de caminhar - Acho que o que ele fez foi interferir nas emoções presentes no ambiente ao seu redor, e para isto, nem é preciso atuar no campo espiritual. É como possuir um corpo: ele vai controlar seu organismo, mas não sua alma. Poucos seres da classe Comum sabem como fazer isto, mas pelo jeito, o que nós estamos enfrentando é mais inteligente do que esperávamos.
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Angel parecu entender muito bem a explicação de seu irmão, porém, eu continuava perdido e assustado. Agora, mais do que nunca, Líon corria perigo. E não só isso: todos ao seu redor, incluindo Serina e quem quer fosse, também.
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- Sei o que está pensando - disse meu pai, parando ao meu lado e passando seu braço pelo meu ombro - mas acredite, tudo vai ficar bem. Temos que ficar mais alerta, sim... Mas nada vai acontecer com seu amigo; lhe dou a minha Palavra de Arcano.
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Por um momento, olhei atônito para Cirus. A Palavra de Arcano era o maior juramento que alguém como nós poderia dar. Depois disso, vi que meu pai estava realmente empenhado em me ajudar nesta missão.
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- E agora, o que vamos fazer? - inquiriu Angel, reunindo rapidamente seus cachos platinados com as mãos e os prendendo com um elástico no alto da cabeça.
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- Para início de conversa - começou Cirus, sua postura reta e autoritária, em uma posição que eu intimamente chamava de ''Módulo Arcano em Ação'' - Você e eu iremos pesquisar qualquer coisa que possa ter acontecido com o rapaz ou que esteja relacionado à ele... Vamos procurar nos hospitais, na delegacia, no corpo de bombeiros e até no cartório. Qualquer informação, por menor que seja, pode ser valiosa para nós.
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Angel meneou a cabeça em concordância, se levantou do braço do sofá e deixou a sala, como se fosse partir em sua busca naquele exato instante.
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- Quanto a você...
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Antes que meu pai me dissesse qual era a minha parte ativa no plano, eu já estava consciênte do que iria fazer. Para falar a verdade, eu meio que já sabia a minha função desde que vira o demônio de cabelo cor-de-fogo no Pavilhão de Tortura da Academia.
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Eu seria o guardião secreto de Líon Biel.
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A partir daquele instante, eu o seguriria para qualquer lugar, estaria atento à tudo ao nosso redor e o protegeria da menor ameaça que surgisse no nosso caminho - igual à um cão de caça treinado... ou à um Anjo da Guarda, olhando a situação por um ângulo mais objetivo.
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E foi exatamente o que eu fiz nas três semanas seguintes.
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Todos os dias, eu buscava o garoto em casa, o levava para a escola e o acompanhava em todas as aulas. A volta era bastante parecida, e eu só me sentia tranquilo quando via que a porta de entrada da moradia dos Biel estava sendo trancada à chave. Não que isso pudesse de fato deter qualquer manifestação sobrenatural, mas a simbologia que a cena representava me deixava muito mais calmo pelo resto do dia.
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Um bônus inesperado que recebi por esta dedicação foi a presença de Serina. Assim como eu, a garota acompanhava o irmão na ida e na volta para casa. E, mesmo tendo que dividir a sua atenção entre as dezenas de seguidores que consquistara na Constantine, ela sempre arrumava uma brecha para ficar na nossa companhia por um tempo. E não era só a amizade com Serina que estava seguindo um rumo diferente do qual eu previra.
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Para minha surpresa, nem Oliver - nem nenhum dos seus amigos - comentou um detalhe sequer da nossa briga sob a passagem subterrânea, logo no segundo dia de aulas. Na verdade, depois que o assunto esfriou em minha mente, eu comecei a suspeitar que adimitir que apanhara como nunca do ''Mestre dos Equisitos'' não era exatamente algo que o líder dos Privilegiados estivesse louco para fazer - por mais que isto pudesse arruinar a minha vida.
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Não que o ato não tivesse gerado uma consequência. Se antes Oliver não me suportava, agora ele me odiava com todas as suas forças. Estava escrito, desenhado e estampado na cara dele. Sempre que me virava na sala de aula, o garoto parecia me encarar, seus olhos claros me enviando onda atrás de onda de tensão. Como se fosse possível, a cada dia que passava, a raiva parecia consumir o filho do diretor aos poucos: Sua pele começou a ganhar um estranho tom pálido, sua barba estava sempre por fazer, e seu cabelo - outrora brilhante - parecia opaco e apagado.
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Se as coisas pareciam estar indo de mal a pior para Oliver, o mesmo eu não poderia dizer sobre mim. Uma das grandes vantagens de eu ter, praticamente, começado a seguir os gêmeos Biel foi que um terço dos estudantes da Academia Constantine pareciam ter perdido a ''aversão'' que sentiam por mim. Eles deviam pensar: ''se Serina e o irmão parecem gostar dele, por que não dar uma chance?''
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Ás vezes, quando Serina conseguia um tempo e se sentava com Líon e eu na hora o intervalo, Alice Corvel e Amanda Vixen traziam todas as suas amigas para conversar conosco, formando um gigantesco grupo para lá de peculiar. Quando as garotas não estavam por perto, Daniel Maltha e seus amigos da Equipe de Lutas vinham se encostar ao redor de mim e do novato, rindo e falando sobre qualquer coisa: desde esportes, o clima, mangás, filmes, música e até... bom, garotas, é claro.
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Era confuso, mas eu me sentia normal pela primeira vez. Quando eu passava pelo corredor, as pessoas agora me cumprimentavam. E, como se não bastasse, nessas três semanas eu não tive um vislumbre sequer do aprendiz de demônio.
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Mas não pense que isto fez com que eu abaixasse a minha guarda, não mesmo. De vez em quando, eu me pegava pensando na criatura, no que ela poderia estar tramando para desaparecer por tanto tempo. Na sexta feira, quando estávamos na Biblioteca no horário da Rede de Leitura, Serina me flagrou desenhando distraídamente as feições nebulosas do perseguidor.
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- O que você está fazendo? - perguntou ela, pegando o meu caderno e encarando o esboço de um par de olhos negros e famintos.
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- Não é nada - respondi rápido, tentando tirar a folha de suas mãos - é só um desenho-de-treino.
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- Nossa, é tão lindo e... assustador ao mesmo tempo - disse ela, me devolvendo o caderno e colocando o seu queixo sobre as mãos.
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- Ih, se prepara que ela vai te pedir alguma! - sussurrou Líon ao meu lado, enquanto corria os olhos pela página do livro que lia.
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Com um movimento, a garota jogou o livro que segurava na cabeça do irmão e se voltou para mim, como se nada tivesse acontecido.
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- Então - continou ela, deslizando o seus dedos pela espiral do meu caderno até encontrar a minha mão - Amanhã, a Equipe do Daniel vai enfrentar o pessoal do Instituto Alverga aqui na escola à noite. E as meninas todas vão vir, e eu gostaria de saber se você não quer vir comigo?
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Em uma batida, meu coração parou. Tentando compreender o que estava se passando ali, olhei por sobre o ombro da garota à minha frente e vi suas colegas reunidas atrás de uma estante, observando nós dois sem pudor algum e dando altas risadinhas. Já em algumas mesas de distância, Daniel e os outros garotos da Equipe balançavam os braços para mim, amostrando pequenos cartazes-de-papel com dizeres como ''Vai fundo, cara!'' ou ''Você é nosso herói!''.
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Por um milésimo, me imaginei passeando com Serina, nós dois de mãos dadas e quem sabe, bem... Mas, assim que imaginei isto, percebi a presença de Líon ao meu lado e tudo veio abaixo. Eu não podia deixá-lo sozinho para poder sair com a irmã dele. As consequências de um erro meu poderiam ser terríveis, e eu nem queria pensar nelas. Foi então que eu tive uma idéia brilhante para aproveitar aquela oportunidade única, não esquecendo dos meus compromissos de Arcano.
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- É claro que sim - respondi, abrindo o sorriso que eu usava quando queria pedir alguma coisa para Cirus - mas eu tava pensando: Por que não levar o Líon?
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- Ah, nem pensar! - arfou o novato, olhando de mim para irmã de forma carrancuda - É ruim que eu vou sair com vocês pra ficar de vela!
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Mas uma vez, a irmã pegou o livro que segurava e tacou na cabeça do irmão.
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- Tudo bem, eu entendi! - disse Líon a contragosto, massageando o ponto em que o livro o acertou - Isso não é um encontro, é só uma saída de ''amigos''...
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Ao falar ''amigos'', o garoto fez questão de formar aspas no ar com os dedos. Mas aquilo bastou para ela e para mim. No dia seguinte, lá estava eu, acompanhando os dois gêmeos pelas ruas de Ventura, na direção do campus da Constantine.
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Já eram seis e meia da noite, e todas as luzes da escola estavam ligadas. Olhando de relance para a fachada dos prédios, a Academia mais parecia um castelo do que outra coisa - suas pequenas luminárias banhando as paredes de tijolos vermelhos de baixo para cima. Do lado de fora, nós conseguíamos escutar com nitidez a algazarra que vinha do Pavilhão de Tortura e enchia o ar crepuscular da rua.
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Quando finalmente chegamos ao Ginásio Poliesportivo, onde aconteceria o Desafio de Lutas, a banda do Instituto Alverga terminava de fazer sua apresentação um tanto desafinada ao som de ''Hey, Mickey!''. Ao que parecia, antes dos membros de cada equipe se enfrentarem na arena, o pessoal das bandas faziam o mesmo - só que com seus instrumentos, ao invés de braços e pernas.
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Assim que encontramos o nosso lugar junto das colegas de Serina, Daniel e seus companheiros se viraram para mim e piscaram deliberadamente. Eu tentei fingir não ver os olhos de Líon rolarem para o céu como se dissesse ''eles pensam que me enganam'', por isso tentei prestar atenção ao máximo na Equipe da Constantine.
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Eu não sabia como Daniel e os outros conseguiam se sentir tão confortáveis estando naqueles colantes vermelhos. Eram constrangedores. As Garotas da Conferida estavam posicionadas estrategicamente logo atrás da área de concentração do time da Academia, e toda hora elas apontavam para os rapazes de vermelho e se abanavam.
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Depois do Diretor Nigro ir até o centro da Arena e cumprimentar o administrador do colégio adversário cheio de pompas desnecessárias, o juiz chamou os capitães das duas equipes e explicou as regras. Daniel e o outro garoto pareceram concordar com os termos apresentados, então os dois tomaram suas posições na área atapetada e o juiz assoou o apito.
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Eu gostaria de dizer como foi a luta, mas não posso. E quando eu digo não, estou querendo dizer na verdade ''não sei o que aconteceu''. Pois, logo após que escutei o eco do apito chegar até mim, eu senti uma dor alucionante rasgar o meu cérebro e desmaiei.
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Ao acordar, eu não estava mais no ginásio. Na verdade, nem na Constatine eu deveria estar. Tudo ao meu redor parecia estar no escuro, e os único ruídos que quebravam o silêncio era o barulho de um motor e duas vozes familiares atrás de mim.
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Tentei abrir os olhos, mas minhas pálpebras pareciam pesadas e lentas. Com um esforço digno de Hécules, consegui despertar de vez. Em um esgar de espanto, percebi que estava sentado no banco do carona de um Táxi - o automóvel percorrendo uma longa avenida ladeada por grandes eucaliptos. Eu reconheci o lugar (era a autopista que ligava Ventura à Dumont), só não sabia por que estava ali.
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Ao meu lado, o taxista - um homem alto e jovem, com grandes costeletas e olhos brilhantes - concentrava toda a sua atenção na estrada à nossa frente, nem parecendo perceber que eu havia acabado de acordar. Ainda sentindo a forte dor de cabeça, me virei na direção das vozes alegres que quebravam o silêncio dentro do carro e tentei ver quem me acompanhava naquela viagem... mas tudo que eu consegui foi me olhar no reflexo de um vidro escurecido, refletindo nas sombras as curvas sinuosas do caminho.
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De repente, um par de luzes ganhou vida do nada, e eu senti o mundo inteiro perder o eicho. Som de pneus freando e o barulho de um automóvel capotando cruzou os ares da noite. O Táxi girou mais três círculos perfeitos de 360°, até que atingiu em cheio o tronco largo de um eucalipto, fazendo o vidro dianteiro se estilhaçar em mil pedaços.
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Atordoado, tirei o cinto de segurança que me prendia e corri para ajudar o taxista, que estava desarcordado. O homem tinha uma feia marca roxa na testa, mas graças ao seu cinto, nada mais tinha sofrido. A barulheira produzida pelos passageiros atrás de mim havia morrido, porém não me preocupei - o maior dano estava na frente do Táxi, não atrás.
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Respirando fundo, tentei abrir a porta do lado do carona, mas não consegui. Olhando para os lados, usei minha força extra e ainda assim a passagem continuava emperrada. Aquilo era ridículo. Como eu iria ajudar os outros se nem a mim mesmo eu podia ajudar?
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Sentindo um forte arrepio, me virei para frente e o meu sangue ferveu. Do outro lado da pista, um conversível negro e elegante se encontrava de cabeça para baixo, seu teto removível jogado à uns oito metros de distância. Eu não conseguia ver como o motorista do outro carro estava, e aquilo estava me deixando aflito.
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Fazendo mais força para me libertar, percebi que cada vez mais as cores ao meu redor pareciam se esvair, e uma névoa gélida e cortante começou a se espalhar pela via, suas formas se espiralando e ganhando dimensões estranhas. Um rasgar cortante e espectral cruzou a autopista, e com o coração na mão, vi o dono do outro automóvel se arrastar por debaixo da carroceria - seus braços e suas pernas em ângulos macabros e impossíveis.
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Congelado, vi o motorista se erguer igual à uma marionete, seus pés virados para trás traçando uma reta na direção do Táxi abatido. Eu queria gritar, mas minha voz não saía e todos os meus movimentos pareciam mais lentos. Curvando-se na minha direção, o homem arrancou a porta do carona com seus braços quebrados e o jogou para longe, o metal produzindo uma chuva de faíscas ao tocar o solo asfaltado à mais de quinze metros.
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Reunindo toda a minha coragem, encarei o estranho que se agigantava sobre mim e senti o choque me abater. Recortado contra lua, o rosto malígno do demônio que seguia Líon me encarava com prazer, sua cabeleira ruiva curvando-se ao vento ártico.
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- Acho que nos encontramos de novo, não? - disse ele, seu hálito pesado me atigindo com um soco. Antes que a criatura fizesse algo mais, consegui me livrar das amarras invisíveis que vedavam a minha boca e gritei.
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E foi o meu grito sufocado que me libertou e me fez acordar de verdade, estatelado sobre a maca de vinil da Enfermaria da Constantine.
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Quando abri os olhos, Serina e Líon estavam ao meu lado, acompanhados por toda a Equipe de Lutas, mais Amanda e Alice. O Prof. Novaz avaliava metódicamente a minha pressão, até que percebeu que eu havia acordado, e me encarou com seus olhos imensos e simpáticos.
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- Vejam só, o dorminhoco acordou!
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A tensão que sustentava o ar se dissipou rapidamente. Pude perceber cada músculo dos maxilares do novato se descontraírem, e com um pequeno suspiro, sua gêmea chegou mais para perto da minha maca e passou as mãos pelos meus cabelos úmidos de suor.
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Eu sabia que aquele não era um momento apropriado, mas um terço da ligação que me tomou à três semanas atrás percorreu com força todo o meu corpo. Por um segundo, eu queria que nos deixassem sozinho, e que parassem de olhar para mim daquele jeito assustado.
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- Hei, o que foi que aconteceu, cara? - perguntou Daniel, dando um leve tapinha na minha perna direita - Você nem viu a nossa escola estraçalhando os babacas da Alverga!
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Com um incontrolável bocejo, me levantei da maca e olhei ao meu redor. Eu não havia desmaido - na verdade, eu havia mergulhado no sonho que me atormentava quase todos os dias, mesmo estando acordado. Algo me fez ficar inconsciente, e algo havia me revelado a cena inteira do meu pesadelo.
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Até aquele dia, a cena sempre acabava quando o motorista do outro carro arracava a porta do carona e a jogava para trás, suas mãos quebradas se aproximando de mim e tentando me pegar. Porém, hoje, eu vira o rosto dele... e eu não tinha nem palavras para descrever o que estava sentindo.
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Aquilo era ruim. Muito ruim.
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- Eu... eu preciso ir para casa - sussurrei, minha voz engrolada e seca como se eu tivesse acabado de ser resgatado de um deserto.
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- Se acalme, jovem Regis - disse o Prof. Novaz, pegando um estetoscópio e o levando na direção do meu peito - Seu pai já foi avisado, e ele está vindo aqui para buscá-lo.
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- Mas e Serina... e Líon? Quem vai levá-los para casa?- perguntei, olhando de um rosto a outro, como se pedisse ajuda.
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- Não se preocupe - disse Líon, passando o braço pela cintura da irmã - Nossos pais já chegaram, eles vão nos levar. Só estávamos esperando para ver se você estava melhor.
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Sem saída, fechei os meus olhos em concordância e deixei o socorrista terminar o seu trabalho.
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Tudo não havia passado de uma ilusão. Eu nunca seria normal, e nada poderia mudar essa condição. Esse tempo todo eu estava tendo sonhos com o demônio assasino, mas só agora eu descobrira... Que tipo de Arcano eu era?
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Olhando para os rostos preocupados que me rodeavam, percebi que as coisas haviam mudado sim. E por três semanas eu me deixei acreditar que eram para melhor.
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Só então eu entendi que tudo fazia parte de uma estratégia, um plano malígno e cruel.
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Pois, olhando para aquelas pessoas, finalmente vi que o jogo das sombras havia começado... e logo eu, o garoto mais solitário de Ventura, enfim tinha muito mais coisas a perder do que antes.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Capítulo 9 - O Confronto

Contrariando todo o bom senso, logo na primeira aula - que foi no laboratório de Biologia - Serina dividiu a mesa com o irmão e comigo. E verdade seja dita, oportunidade de se esquivar de nossa companhia não lhe faltou.
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Depois que entramos na sala, toda a turma de veteranos nos encarou - ou melhor, encararam à ela - estupefados. Percebendo nossa chegada, o Prof. Novaz pediu para que a garota se apresentasse á classe, antevendo que Líon já deveria ter tido a oportunidade de fazê-lo no dia anterior. Aceitando o convite com um meio sorriso tímido, e uma naturalidade sem tamanho, ela o fez.
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Pelos dois minutos em que falou, ela nos teve na palma de sua mão. Nem mesmo Oliver e parte do grupo dos Privilegiados que dividiam as aulas conosco pareciam ser imunes ao poder que Serina irradiava. Secretamente, enquanto a observava à frente do quadro negro, percebia o quanto ela se parecia com o sol lá fora - repleta com uma força magnética, a garota era capaz de envolver quem quer que seja ao seu redor.
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Assim que terminou o seu pequeno discurso, metade das garotas - incluindo Amanda Vixen e suas amigas - ofereceram suas mesas para Serina se sentar. Porém, surpreendendo à todos, ela recusou educadamente os pedidos e se sentou entre Líon e eu (me lançando uma rápida piscadela que quase fez meu estômago rodopiar).
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Durante o resto do dia, os dois irmãos me seguiram por todas as salas de aula. Mas, diferente de mim ou do novato, a menina atraía a atenção das pessoas por onde passava.
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Sem dúvida alguma, o momento mais embaraçoso foi na hora do intervalo. Metade dos grupinhos espalhados pelo Pátio Central da Constantine pareciam ter separado um lugar cativo para Serina ao meio deles. Só que, novamente frustrando a expectativa geral, a garota preferiu se sentar junto comigo e Líon em uma pequena banqueta na Galeria que ligava o Prédio Principal da Academia à velha construção que nos servia como Biblioteca.
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Por alguns minutos, tudo o que fiz foi ficar admirando como a claridade que invadia a Galeria por entre as frestas deixadas por suas colunas de tijolos vermelhos resplandecia pela pele morena da garota. Eu tinha plena conciência que Líon falava alguma coisa comigo, mas todas as palavras que saíam de sua boca pareciam flutuar a minha volta, como se eu estivesse usando potentes fones de ouvido no volume máximo.
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''Não fique encarando muito a novata, esquisitão!'', eu me repreendia silenciosamente, quando Serina descansou o sanduíche que comia em seu colo e virou-se na minha direção, seus olhos castanhos repletos de uma preocupação que não combinava com suas feições angelicais.
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- Acho que aquele loirinho de hoje cedo está encarando você... - cochichou ela, inclinando minimamente o seu queixo na direção de Oliver Nigro, cujo a expressão carrancuda parecia indicar que ele estava me fulminando mentalmente.
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- Ah, não se preocupe - respondi, não conseguindo controlar o riso que surgia em meus lábios - Ele e os amiguinhos dele sempre fizeram isto... Não é agora que iriam parar.
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- Mas por quê? - continou Serina, sua face demonstrando todo o choque que sentia - Por que eles te tratam desse jeito?
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- Sei lá... Acho que não me encacho nos ''altos padrões'' de aceitação dos Privilegiados.
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Parecendo não acreditar no que havia acabado de escutar, a garota chegou mais perto de mim e me esquadrinhou por inteiro, igual às garotas que ficavam espremidas na porta do vestiário masculino antes das aulas de Ed. Física.
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- Você só pode estar brincando! - disse ela, meneando a cabeça em descrença, um sorriso de incredulidade surgindo em seus lábios - Ou isso, ou você não deve ter um espelho sequer na sua casa!
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Agora quem não acreditava no que havia escutado era eu. Foi isso mesmo que eu ouvi? Serina, a garota que praticamente parou a Constantine com a sua chegada, acabara de dizer que me achava bonito?
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- Hei, sobre o que vocês estão cochichando? - interrompeu Líon, olhando de mim para a irmã com pura suspeita.
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- Nada - respondeu sua gêmea, pegando de volta o seu sanduíche e o mordiscando de leve - Só estava dizendo para o Adrian aqui que eu acho que aquele loirinho, da nossa sala, está pensando em aprontar alguma coisa pra cima dele...
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- O quê? O Oliver?! - exclamou o novato, não disfarçando seu olhar de repulsa ao se inclinar para o outro lado do pátio, onde os Privilegiados estavam - Tudo bem, ontem ele se mostrou para mim um Otário com O maiúsculo... Mas por que ele iria armar alguma coisa contra o Adrian?
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- Bom - começou Serina, claramente arrependida de ter tocado no assunto na frente do irmão - Assim que eu cheguei na escola, ele e o grupinho dele meio que... me importunaram - na menor menção de Líon em se levantar, a garota correu para apoiar sua mão esquerda sobre o peito dele, tratando logo de acrescentar - Mas eu tinha tudo sobre controle! Só que... bem, o Adrian viu e interferiu.
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- E?... - indagou o novato, claramente nem um pouco convencido com o final que sua gêmea havia dado ao assunto.
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- Ahn... - continuou Serina, olhando para mim como quem pedisse um pouco de apoio - Ficou meio óbvio que esse tal de Oliver não ficou feliz com a interferência do Adrian na nossa ''conversa''; só que, antes que as coisas ficassem realmente feias, eu consegui separá-los.
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- Então era por isso que vocês dois estavam se agarrando em baixo da árvore quando eu cheguei?
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- Sim, quero dizer, não! - engasgou-se a garota, ao mesmo tempo em que eu tentava afroxar o nó da minha gravata - Não seja idiota, garoto.
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Depois que Serina me alertou sobre o comportamento de Oliver, durante o resto do dia me vi observando o garoto por cima do braço - sempre me esquivando quando percebia que ele se virava para mim. Era bastante nítido para qualquer um que nós dois nunca tivemos uma relação de grande camaradagem ao longo desses onze anos. Mas, até então, eu nunca tinha visto o filho do diretor me encarar com tamanha raiva - geralmente era só nojo.
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Pois foi isso o que Oliver fez: me encarou com raiva no intervalo... me encarou com raiva na aula de Cálculo... Me encarou com raiva no Laboratório de Informática, até que o último sinal do dia tocou, e toda a turma de veteranos se dispersou, fugindo da sala como se houvesse uma ameaça de bomba na escola.
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Quando terminei de vestir o meu agasalho de estimação por cima do paletó vermelho do uniforme, acompanhei Líon e Serina na direção da entrada, fazendo questão de ignorar o olhar persistente do rapaz sentado no canto mais escuro do Laboratório.
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- Então - eu disse, colocando minha mochila sobre os ombros e subindo em cima do meu skate - tenho uma vaga sobrando no meu automóvel. Quem quiser uma carona para casa, é só subir. Mas vou avisando, as damas tem prioridade!
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O Novato revirou os olhos deliberadamente, ao passo que sua irmã se colocou entre nós dois e sorriu de forma marota para mim.
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- Você é um palhaço, sabia? - riu ela, ajeitando uma mecha escura que havia caído sobre o seu rosto - Mas hoje vou ter que recusar. Papai vem buscar a gente de carro para almoçar, sabe... Comemorar o novo emprego dele e tal.
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- Tudo bem - comentei, tentando esconder a minha decepção.
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- Mas amanhã eu vou aceitar essa carona com todo o prazer! - completou a garota, assim que chegamos ao Pátio de Entrada da Constantine.
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- Eu não vou me esquecer disso... - eu disse, contemplando os dois se afastarem de mim e entrarem em um carro preto e elegante do outro lado da calçada.
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Líon, que não havia perdido a esportiva, abaixou a janela ao lado do seu banco e gritou na minha direção:
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- Hei, eu também não vou me esquecer que vocês dois iam me deixar voltar para casa a pé!
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Ao som de uma breve bozinada de despedida - provavelmente do pai dos gêmeos - o automóvel negro acelerou e partiu, me deixando sozinho junto com os outros estudantes que saiam da Academia e partiam para os seus destinos.
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Ainda rindo sem saber o por quê, dei impulso no meu skate e segui à toda na direção da Casa-de-Bombeiros. O trânsito pelas ruas de Ventura aquela hora estava bastante movimentado, por isso resolvi pegar um atalho. Como esperado, a passagem subterrânea que cruzava uma das avenidas principais se encontrava vazia e mal iluminada, então me dei ao luxo de continuar na mesma velocidade que estava sem me preocupar em ''atropelar'' alguém.
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Porém, antes que eu pudesse chegar ao fim da pequena via, um vulto alto e forte bloqueou o meu caminho, seu rosto oculto por um capuz e sua mão direita armada com uma barra de ferro. Assustado, parei o skate de forma brusca e tentei me equilibrar sem ver o chão, meus olhos congelados na figura ameaçadora á minha frente.
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Por um minuto, me lembrei do jovem demônio perseguidor. Mas, assim como naquela manhã, eu estava completamente equivocado. Com uma destreza particular, o vulto girou a barra de ferro em sua mão e puxou o capuz do seu casaco para trás, revelando seus olhos claros cobertos de rancor.
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- Oliver - sussurei, tentando manter a calma - o que você está fazendo aqui?
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Com um sorriso sem humor algum, o rapaz parou e me encarou, o bastão metálico ainda girando em sua mão. O eco seco de passos às minhas costas me mostravam que ele não viera sozinho. Quando me virei com cautela, vi Antoni e Tomas se aproximando de mim, o primeiro segurando um taco de beisebol e o segundo alizando um longo pedaço de madeira.
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- Hei, caras, nós sabemos que não precimos disso tudo - tentei apaziguar, mas tudo o que eu consegui foi fazer Oliver acertar a parede ao seu lado com a barra de ferro.
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O som correu pela passagem e me encheu de pânico. É claro que eu já havia brigado - ou melhor, apanhado - outras vezes com aqueles caras. Porém, das outras vezes, foram carne contra carne. Eu podia suportar. Só que, alguma coisa me dizia, daquela vez eles queriam deixar uma mensagem bastante clara para mim.
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- Regis, Regis... - suspirou Oliver, chegando mais perto de onde estava - cadê toda aquela bravura que você demonstrou pra gente hoje de manhã? Foi embora com a garota?
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Antoni e Tomas riram atrás de mim. De fato, pela primeira vez na vida, eu queria mesmo que o ''Adrian Rebelde'' e sem medo de ser expor estivesse ali para me controlar. Mas, como ele mesmo disse, parecia que o meu espirito destemido havia ido embora naquele carro elegante junto com Líon e Serina.
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- Você sabe que seria mais racional se você simplesmente me dissese para que, da próxima vez, eu ficasse fora do seu caminho, não? - perguntei, pegando cautelosamente o skate dos meus pés e o segurando á minha frente.
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- É claro que eu sei... - respondeu o líder dos Privilegiados - Mas hoje eu estou afim de tirar um pouco de sangue dessa sua carinha.
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Se não fosse pelos meus dons de Arcano, eu tinha certeza que teria caído no chão sem pensar duas vezes. Assim que terminou de falar, Oliver girou o seu bastão tão rápido na minha direção que tudo o que eu pude fazer foi me esconder embaixo da prancha do skate. O choque do metal com a madeira o desiquilibrou, mas isto não impediu que seus amigos viessem ao seu auxílio.
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Antes que os dois pudessem me atingir, joguei o meu skate para trás com toda a força. A prancha os atingiu em cheio no meio do estômago, e tanto Antoni quanto Tomas foram arremessados para trás iguais à duas grandes e horrendas marionetes. Recuperado do choque, Oliver tentou me acertar mais uma vez, porém eu consegui ser mais rápido. Aparei a barra de ferro entre as minhas duas mãos e a entortei, transformando-a em um enorme ponto de interrogação.
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Aterrorizado, o garoto tentou fugir, mas era tarde demais. A adrenalina tomava conta do meu ser, e tudo o que eu via na minha frente eram formas escuras e vermelhas. Sem dar margem para escapatória, peguei o filho do Diretor Nigro pelo colarinho do uniforme e o joguei na mesma direção onde seus amigos tentavam se levantar. O choque fez os três caírem novamente, uma emaranhado grotesco de braços e pernas se movendo em todas as direções.
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- Que tipo de coisa é você? - bradou Oliver, assim que conseguiu se levantar e limpou o pequeno filete de sangue que escorria pelo canto de sua boca.
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Eu não tive tempo de responder que tipo de coisa eu era. Após ajudar os amigos a se levantar, Oliver e seus dois comparsas correram á toda velocidade na direção contrária da passagem subterrânea - deixando para trás apenas o taco de beisebol, o pedaço de madeira e os bastão de ferro retorcido.
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Assim que os três saíram do meu campo de visão, um poderoso sentimento de culpa me tomou. O que eu havia feito? Eu usara meus dons de Arcano para machucar outra pessoa, drasticamente mais fraca e quebrável do que eu. Respirando rápido, tentei reunir todas as minhas coisas que haviam se espalhado durante o confronto. Enquanto jogava tudo o que eu alcançava para dentro da minha mochila, eu pensava que Oliver poderia estar neste exato momento contando para todos que conhecíamos o que eu havia acabado de fazer à ele, Antoni e Tomas.
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E foi neste instante que a luz da passagem se ascendeu e voltou a se apagar.
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Confuso, olhei para os lados para tentar ver o que havia acabado de acontecer. Para meu espanto, parado contra a luz do sol - no lado oposto do vão - se encontrava a sombra alta e descamisada de um rapaz ruivo e musculoso. Seus olhos negros como a noite me avaliavam com atenção, um dos cantos de sua boca levemente repuchado em uma expressão de contentamento.
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Contrariando a lógica normal, me levantei e segui à passos largos na direção do demônio que perseguia Líon e que o empurrara da plataforma do Pavilhão de Tortura no dia anterior. Quando cheguei perto dele, tudo fez sentindo...
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Foi ele! Aquilo tudo, desde de manhã, havia sido armado por ele! O aprendiz de assassino havia controlado a Oliver e a mim para que nos confrontássemos, para que eu usasse os meus dons de Arcano. Por isso a sensação de ser tomado por uma personalidade que não era minha.
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- O que você quer? - cuspi com raiva, tendo que inclinar a minha cabeça para poder olhar o rosto zombeteiro à minha frente.
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- O que eu quero? - disse ele, com uma voz grave e divertida - Hum, eu acho que você sabe... Eu quero você fora do meu caminho!
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Eu o admirei, minhas mãos fechadas em punho. Ele estava pedindo para eu sair de fininho e observar Líon morrer? Só podia ser brincadeira.
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- Acho que isso vai ser meio impossível - respondi, meus dentes tão cerrados quanto os meus olhos.
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- Impossível, é? Então acho que vou ter que preparar muitas outras brincadeiras para nós dois!
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Com um sorriso maligno, o jovem demônio tremeluziu e desapareceu. Eu ainda girei nos calcanhares, na vaga esperança de o encontrar atrás de mim, mas tudo o que eu podia ver era minha mochila, meu skate e a luz do sol que invadia a pequena passagem - sem dar pistas da aparição que havia acabado de se materializar ali.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Capítulo 8 - Serina

Como por milagre, consegui fazer todo o percurso da Casa-de-Bombeiros até a Academia em apenas 4 minutos.
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Quando finalmente cheguei ao portão da escola, o pátio de entrada ainda estava abarrotado de estudantes e a barulheira de conversas que tomava conta de todo o ar parecia ainda pior do que a do dia anterior.
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Completamente cego pela forte claridade do sol naquela manhã, desencavei do fundo da minha mochila o meu velho par de óculos escuros e me encostei na mesma árvore frondosa de sempre - brincando distraídamente com as rodas gastas do meu skate enquanto observava o ir e vir do corpo docente da Constantine por detrás das minhas lentes baças.
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Sem prestar atenção em nada particular, percebi um ligeiro burburinho se formar no canto mais distante da rua. Ouvindo a confusão de vozes que chegava até a mim, me inclinei com cuidado na direção da algazarra e apurei a minha audição o máximo que podia - distinguindo claramente o tom insuportavelmente pretencioso de Oliver Nigro, acompanhado pelas gargalhadas estúpidas de todos os seus asseclas da turma Privilegiada.
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- Vejam só, caras - cacarejou Antoni Pabin, o Capitão ''só-músculos'' da Equipe de Natação da escola, para quem quisesse ouvir - acho que a gatinha aqui não tem língua!
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Em resposta a provocação do amigo, todos os garotos urraram e assobiaram com prazer. Ao que parecia, a horda de desocupados da Constantine havia encontrado uma nova vítima para atazanar e, não sabendo muito bem o por que, aquilo não estava me cheirando nada bem.
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- Hei, não precisa ficar com medo - disse Oliver cauteloso, suas verdadeiras intenções disfarçadas em um tom de voz cordial que eu nunca o vira usar com ninguém - Eu não vou te machucar, acredite... nós só queremos, você sabe, conhecer melhor nossa nova colega de classe.
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Antevendo a confusão formada, contornei o tronco da árvore aonde eu estava escondido e encarei o famoso grupinho de baderneiros, minhas sobrancelhas unidas só de imaginar o que eles poderiam estar aprontando.
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Para meu espanto, Oliver e todos os seus seguidores formavam um círculo estranho e ameaçador ao redor de ninguém menos que Serina Biel - cujo rosto perfeito estava visivelmente lívido em uma mescla de impaciência e asco ao ver um de seus cachos escuros se enroscarem entre os dedos pálidos do malicioso filho do Dir. Nigro.
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Sentindo um formigamento nada convencional me subir pela coluna, caminhei à passos largos a pequena distância que separava o gramado da Constantine da esquina da rua e mergulhei no interior da roda de Privilegiados. Eu sabia que estava cometendo um suicídio - não só no sentido social - mas acotovelei todos os idiotas que me trancavam a passagem até parar bem à frente do líder estúpido deles, a vista embaçada e vermelha iguais à de touro enfurecido.
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- O que vocês pensam que estão fazendo com ela? - perguntei, não reconhecendo o tom sombrio de minha própria voz, tamanha a força que me controlava.
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Por um segundo, todos me encararam. Pelo visto, eu não havia sido o único que fora pego de surpresa pela ''audácia'' dos meus isntintos. Tomas Mantiz e Lucas Darvel trocaram uma longa e significativa olhada, enquanto a maioria dos caras da Equipe de Natação - incluindo o parrudo Antoni Pabin - deram meio passo para trás, como se só a minha presença ali fosse capaz de lhes transmitir o vírus ebola.
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Eu estava pouco me lixando para a reação daqueles acéfalos bombados e sobre o quê eles pensavam ou deixavam de pensar sobre mim.
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O que me importava - e me consumia pouco a pouco por dentro como o veneno quente e pegajoso de uma víbora - era o fato de que, por mais pertubado que pudesse parecer, Oliver continuava com sua mão nojenta nos cabelos da irmã de Líon. E que, além de repulsiva, a atitude parecia ser de uma ousadia sem par - mesmo para brutamontes estúpidos como os Privilegiados.
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- O que vocês pensam que estão fazendo com ela? - repeti a pergunta, mantendo os meus braços trêmulos bem colados junto ao corpo, contando de 1 até 100 para não fazer nenhuma loucura.
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Recuperando-se gardativamente do choque momentâneo que minha entrada causou, Oliver se desvencilhou de Serina e se virou para mim - a atitude autoritária e de superioridade que ele sempe utilizava quando falava comigo no seu nível máximo.
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- E o que o Senhor Bizarro tem a ver com isso? - devolveu o garoto, suas mandibulas tão tensas que eu seria capaz de dizer quantos músculos haviam surgido em sua face. - Pelo o que percebi, o assunto ainda não chegou na lixeira que você mora...
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Tive que respirar umas cinco vezes para não esmagar o filho do diretor na frente daquelas híenas que ele chamava de amigos. Foi um momento de perigo particular. Por mais que o meu lado consciente e racional dissese para mim que qualquer tolice pudesse representar o fim da minha vida ''silenciosa'' em Ventura, o resto do meu ser gritava para acabar com o falatório e ir para os finalmentes com o Rei dos Bundões.
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Eu não sabia explicar minha reação - estava encurtando ainda mais a distância que havia sido feita no centro do círculo, minhas mãos cerradas em punhos e o meu coração palpitando tanto que eu não conseguia escutar os meus próprios passos. Era como se, naquela manhã, um Adrian menos responsável e mais exibido tivesse se libertado dentro de mim... e o seu primeiro desejo era esfregar a carinha mais-que-simétrica de Oliver no asfalto quente até não sobrar nada, só para ver como é que ficaria.
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Porém, antes que o ''Adrian Rebelde'' pudesse agir e ferrar com tudo, Serina saiu de seu estado de observadora e se colocou no centro do círculo - suas mãos agarrando o meu braço esquerdo ao mesmo tempo em que seus olhos escuros fuzilavam o líder dos Privilegiados com uma indiferença quase que mortal.
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- Nossa, até que enfim... pensei que você não ia chegar nunca!
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Com um sorriso angelical, a garota me encarou e piscou - e eu conseguia ler em cada traço de sua expressão inocente as palavras de aviso ''se acalme, não se encrenque e deixe tudo comigo''.
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- Muito bem, acho que não preciso mais da ajuda de vocês - continuou ela, reforçando a palavra ajuda como quem dizia ''caiam fora da minha frente agora, ou vão me conhecer de verdade!'' - Adrian, por que não me leva para conhecer a Academia?
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Não pensando duas vezes, puxei a novata pelo braço e a tirei do círculo, sentindo os olhares incrédulos de Oliver e seus cumpinchas perfurando as minhas costas de uma forma bastante ofensiva. Eu poderia dizer que o ''meu Eu louco'' ainda rosnava para o grupo deixado para trás, mas a verdade era que - assim que Serina colocou as suas mãos suaves e delicadas sobre a minha pele - toda a raiva e a tensão que parecia prestes a explodir de mim desapareceu, como se nem tivesse existido.
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- Obrigada - sussurou Serina, quando estávamos longe o bastante para não sermos ouvidos pelos Privilegiados - Eu já ia resolver tudo com aqueles... otários, mas... Foi muito legal você ter aparecido para me defender. Muito legal mesmo.
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- Não precisa me agradecer - respondi, sentindo o sangue fluir e se concentrar em meu rosto - Eu vi o que eles estavam fazendo e não achei justo... Só fiz o que era o certo.
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Por um milésimo, ela me encarou e sorriu.
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- Líon tem razão - comentou a garota, assim que chegamos às raizes da àrvore onde eu havia largado minhas coisas – Meu irmão acha que você deve ter algum tipo de gene sobrehumano ou coisa assim. Depois do que você fez hoje, tenho que concordar com ele.
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Sentindo um forte aperto no peito, parei e olhei para Serina um tanto assustado. Então Líon desconfiava de mim, mesmo me conhecendo em menos de um dia... Será que eu era tão estranho assim que ninguém acreditava no meu disfarce de ''adolescente normal''?
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- Bom, ele não fez nenhum tipo de fofoca - continuou ela, percebendo minha reação e interpretando de forma errada, como quem se desculpa por ter dito algo errado - Líon só me contou o que aconteceu ontem na piscina, e devo dizer que estava assombrado. Acho que notou que ele não é exatamente o típico garoto que faz muitas amizades em uma escola; mas aí chega alguém como você e o trata como um igual, com respeito... Eu não tenho nem palavras para agradecer, de verdade!
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Eu fiquei parado no mesmo lugar sem entender aonde ela queria chegar.
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Se Líon não desconfiava do que eu realmente era, por que ele ficaria tão impressionado comigo? Eu não processava nem um pouco como uma pessoa normal poderia se sentir assim com relação a mim, e muito menos o que Serina queria dizer com aquela história de ''alguém como você''. No ranking para descobrir qual adolescente era o Mais Deslocado do Mundo, eu tinha certeza que levaria o primeiro lugar em disparada.
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E foi tentando dizer isso a ela que eu acabei percebendo o quão próximos nós dois estávamos. Meu rosto deveria estar a uns dez centimetros acima do dela, e só de olhar o meu reflexo naqueles seus olhos escuros e profundos, uma sombra forte e embaraçosa da ligação que eu havia sentido na manhã anterior tomou conta de todo o meu corpo de assalto e se espalhou pelo ar igual á uma tempestadde de verão. Eu tinha certeza, mais do que nunca, que a conhecia de algum lugar – mas de onde era o mistério.
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Em um tempo inestimável, ficamos congelados naquela posição - um encarando o outro - até que um pigarro alto e claro ao nosso lado nos despertou por completo.
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- Pelo visto, acho que você e minha irmã se conheceram muito bem...
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Líon estava parado à uma pequena distância de nós, os braços cruzados sobre o agasalho com capuz e a expressão dividida entre a confusão e o divertimento. Rapidamente, Serina e eu nos separamos, o que me deu a chance de me virar e pegar o meu material no chão - evitando ao máximo o olhar pra lá de inquisitivo do rapaz às minhas costas.
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- Nossa garoto, mas você demorou! - ofegou Serina, como se tivesse acabado de realizar a prova dos 200 metros com barreira.
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- O que eu podia fazer? - retrucou o novato, pegando o meu skate com os pés e o segurando na minha direção - hoje é o primeiro dia do papai no trabalho novo, e o banheiro da suíte dele e da mamãe não está funcionando...
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Ainda um tanto afobado, me levantei da posição em que me encontrava e peguei o skate das mãos de Líon, o agradecendo pela ajuda sem ter corajem o suficiente de o encarar nos olhos.
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- E aí, será que eu preciso mesmo fazer as apresentações? - perguntou o garoto, sua voz destilando sarcasmo - Por que, se quizerem, eu faço com todo prazer: Serina, este é o Adrian, de quem eu lhe falei ontem... Adrian, esta é minha irmã-gêmea Serina.
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Depois dessa, eu tive que levantar o meu rosto e admirar o novato à minha frente.
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- O quê? - soltei sem pensar, tendo certeza que a minha expressão estava tão epantada quanto eu me sentia - Ela é sua irmã-gêmea?
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Sem cerimônia alguma, tirei os óculos escuros da minha frente e me virei de um para outro umas cinco vezes. Aquilo era inacreditável. Enquanto Serina era baixa e sua pele castanha parecia resplandecer cada raio de sol, Líon era um verdadeiro poste, cuja pele morena parecia não ter visto a luz do dia por um longo tempo... Nem o cabelo dos dois eram iguais: o do novato era lanzudo e sem forma, caindo para os lados de todas as direções - já o da garota era bonito e sedoso, uma verdadeira casacata cacheada da cor do chocolate.
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- Sim, infelizmente ele é o meu gêmeo - respondeu a garota para mim, ao mesmo tempo em que empurrava com força o ombro esquerdo do irmão - Porém eu sou a filha mais velha.
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- Só oito minutos mais velha! - protestou Líon, massageando a clavícula de cara feia.
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- Claro, mas isto não muda o fato que eu continuo sendo a mais velha...
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Antes que eu me recuperasse totalmente da surpresa, o sinal da Academia ecoou pela calçada.
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Sem perceber, tanto Serina quanto o novato me levaram escada acima para o Portão de Entrada, os dois rindo até não poderem mais da minha careta congelada de espanto. Quando chegamos no pequeno patamar, Oliver e os Privilegiados nos alcançaram, tirando Líon e eu do caminho - ao mesmo tempo em que olhavam para a irmã do novato e resmungavam para quem pudesse ouvir coisas como ''Que desperdício!''.
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Foi então que o pequeno balão de entusiasmo que havia crescido dentro de mim desde que Serina me tocara começou a se esvaziar. Estava na cara que toda aquela atenção que a garota estava tendo comigo logo iria acabar. Era só olhar para o lado; por onde ela passava, não importava quem fosse, todos a acompanhavam. Com o tempo, finalmente Serina iria ver que existiam companhias muito melhores e mais parecidas com ela na Constantine do que o irmão-gêmeo e - é lógico - eu.
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E com a cabeça cheia de tudo aquilo, nem notei o vulto alto e ruivo que nos seguia à uma pequena distância ao longo do corredor, seus olhos negros e malígnos transborando em um prazer ofensivo.