quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Capítulo 15 - Convite

- Quem é você, e o que fez com o verdadeiro Adrian Regis?
.
Líon e Serina me encaravam como se eu tivesse perdido a cabeça por completo. Tudo bem, talvez eu tenha a perdido - mas foi só um pouquinho. Afinal, reconheço que ninguém em sã consciência pularia de um carro em movimento e desceria três quadras abaixo de sua casa em meio à um verdadeiro dilúvio só para convidar o amigo (e sua irmã desconcertantemente linda) para uma festa clandestina organizada pelo seu arqui-inimigo de Escola.
.
Mas eu tinha que fazer esta ''loucura''. Eu não podia deixar que os gêmeos continuassem encarcerados dentro de um quarto, com medo de suas próprias sombras, enquanto um candidato à vilão de fotonovela executava a sua vingança mesquinha, empregando todas as suas forças em ferrar com a cabeça - e a vida - dos dois.
.
- Cara, é a Festa dos Veteranos - retrucou Líon, sua voz no mesmo tom à de um professor que tenta explicar algo bem óbvio para um aluno especialmente estúpido - Além de ilegal, é o Oliver quem está realizando... Tá na cara que esta história não vai acabar bem!
.
- Eu sei, eu sei - respondi com impaciência, enquanto observava culpado o pequeno círculo de água que escorria de minhas roupas encharcadas e ensopava o carpete azul-brilhante sob os meus pés - mas não iremos para a festa por causa dele... e sim por causa de vocês!
.
- O que você quer dizer com isto?
.
Do outro lado da sala, Serina observava nossa discussão com ligeiro interesse. Por mais abatida que ela e o irmão poderiam estar, nada no mundo parecia ter o poder de desfigurar as suas feições angelicais ou de apagar o brilho dourado de sua pele castanha.
.
- O que eu quero dizer - comecei a falar, fazendo força para colocar minha linha de pensamento no caminho certo, enquanto tomava cuidado para não dar com a língua nos dentes - é que estou preocupado. Já fazem duas semanas desde que... aconteceu aquilo tudo na Constantine... e vocês continuam na mesma! Não saem de casa. Perdem as aulas. Nem mesmo atendem o telefone!
.
Por um longo minuto, nem Líon ou Serina trocaram palavra alguma. Os dois mantinham as cabeças baixas, a garota parecendo apreciar o mesmo ponto fixo do chão acarpetado enquanto o irmão acariciava distraidamente a pelagem negra e luzidia de seu gato de estimação.
.
Sortudo, por falar nele, ainda não havia superado a sua ''pequena'' repulsa por mim. Ao que tudo indicava, o fato de eu estar parado - e molhado - no meio da sua sala de estar era uma afronta mortal, e seus olhos amarelos-letais não me deixavam esquecer que eu só continuava mantendo a minha integridade física devido ao simples fato de ele estar involuntariamente aprisionado no colo do dono.
.
- Sabem - comentou uma voz feminina e bem adocicada às minhas costas - acho que o amigo de vocês tem razão.
.
Tentando disfarçar o susto, me virei para trás e dei de cara com a mãe dos gêmeos. A mulher sorria para mim com ternura, e uma de suas mãos estendia um par de toalhas alvas e felpudas.
.
- Me desculpe, senhora - murmurei constrangido, aceitando de bom grado as toalhas e tentando minimizar o mais rápido que podia o estrago que eu produzia.
.
- Por favor, me chame de Leona - com uma graça indescritível, a esposa do Dr. Biel atravessou a pequena sala de visitas e sentou-se delicadamente no braço da poltrona onde Serina estava - E não precisa se desculpar... Sou eu que tenho que lhe agradecer por vir aqui e tentar colocar um pouco de juízo nesses dois cabeças duras.
.
- Um pouco de juízo?! Ele está tentando nos levar para uma festa clandestina!
.
Em resposta ao comentário indignado do filho, tudo o que Leona fez foi cruzar os braços de forma displiscente e lançar um olhar bastante divertido na direção de Líon.
.
- Pode parecer bem atípico o que estou para dizer - continuou a mulher, a expressão despreocupada ainda estampando o seu rosto - mas eu acho que vocês fazerem algo ''indevido'' é mil vezes melhor do que simplesmente não fazerem nada!
.
Olhando aquele momento de forma superficial, poderia se dizer que a mãe dos gêmeos estava ''curtindo com a cara'' dos filhos sem se abalar com nada. Mas a verdade era que aquela chacota ocultava algo que não poderia ser mais distante do que aquilo. Algo que, querendo ou não, tanto Líon quanto Serina reconheciam muito bem - e que teriam que dar o braço a torcer.
.
- Então - começou a garota, olhando de mim para a mãe com uma expressão que misturava desafio e resignação - tudo o que vocês estão pedindo é que concordemos em ir nesta tal ''Festa dos Veteranos'', sob a condição de agirmos feito adolescentes desmiolados em uma balada de um filme produzido para a televisão?
.
- Na verdade - respondeu Leona, um sorrisso zombeteiro e satisfeito brincando em seus lábios, reconhecendo a vitória antes mesmo dela ser declarada - eu também acrescentaria à esta condição algo como ''voltar para escola e recuperar todas as matérias que perderam'', mas suponho que os dois já entenderam o recado...
.
Depois deste sútil ultimato disfarçado de conversa casual, acho que nem preciso dizer que - na segunda feira seguinte - lá estava eu na porta de entrada dos irmãos Biel, esperando pacientemente Líon e Serina se aprontarem, para irmos juntos para mais um dia de ''estudos'' na Academia Constantine.
.
- Eu ainda não acredito que você convenceu a mamãe com aquela baboseira... - retrucou o garoto ao meu lado, pela décima quinta vez só naquela manhã - Afinal, que tipo de responsável ''normal'' prefere ver um filho aprontando no meio da noite do que ficando em casa, sozinho em seu quarto?
.
- A nossa - respondeu Serina, colocando-se elegantemente entre nós dois e dando o braço para o gêmeo e para mim - E, pensando melhor, acho que ela tem razão. Eu já estava começando a sentir falta do pessoal.
.
Ao dizer isto, a garota se voltou na minha direção e me lançou uma ligeira piscadela.
.
- Legal, acho que agora eu posso vomitar - resmungou Líon, deixando claro que tinha visto o que havia acabado de acontecer. Mas, para a minha felicidade, ele não teve muito tempo para continuar a sua picuinha. Pois, assim que chegamos ao pátio externo da escola, fomos literalmente engolidos por uma pequena multidão que nos aguardava no Portão de Entrada da Constantine - basicamente formada pelos membros da Equipe de Lutas, muito bem acompanhados por Alice e suas amigas.
.
- Ai Meu Deus, Ai Meu Deus! - repetiu a garota entre os gritos estridentes das outras meninas, todas pulando e balançando as mãos ao redor de Serina como mariposas rodeando uma lâmpada fluorescente no verão. - Serina voltou, Serina Voltou!
.
- Ah... É bom ver vocês também! - Serina sorriu timidamente, claramente constrangida pela demonstração de carinho exarcebada.
.
- Como vocês sabiam que nós viríamos para a escola hoje? - perguntou Líon, tentando se esquivar inutilmente dos tapinhas e dos abraços-de-urso que os lutadores tentavam dar nele.
.
- Sabe, eu tenho os meus informantes - disse Daniel, despenteando o cabelo lanzudo do novato e fingindo socar o queixo dele.
.
Se ele tinha ou não informantes, eu realmente não sabia. Mas de uma coisa eu estava certo: aquela surpresa havia feito muito bem para os irmãos Biel. É claro que Líon fingia estar bastante contrariado com toda aquela atenção, mas eu podia ver que, no fundo, ele se sentia maravilhado com a recepção - tanto com a do grupo barulheiro ao nosso redor quanto a dos estuadantes que passavam por nós e cumprimentavam rapidamente à ele e Serina.
.
Só que não foram só os alunos da Constantine que demonstraram o seu contentamento com o retorno dos gêmeos para a escola. Até os professores da Academia pareciam felizes com a presença dos dois. Um exemplo disto foi a Treinadora Kara, que - contrariando todas as expectativas - anunciou com alegria para a turma de Formandos que teríamos um dia de atividades livres no Pavilhão de Tortura.
.
- É sério, por essa eu não esperava - comentou Serina, assim que nos encontramos no intervalo, alguns dias depois - Pelo o que falam, a Treinadora nunca abandonou um plano de aula em todos estes anos... O que foi que deu nela?
.
- Eu não faço a mínima idéia - murmurou Líon, entre uma e outra mordida que dava em seus snacks de batata hiper-condimentados - Mas, se eu pudesse apostar em alguma coisa, eu diria que isto tem uma ''certa'' relação com a tal Festa dos Veteranos.
.
O que não deixava de ser verdade.
.
Pois, a cada segundo que se passava, mas as conversas pelos corredores eram substítuidas pelos murmurios nervosos daqueles que planejavam ir às escondidas para o evento. Corria um boato de que, para dar um ''cala a boca'' nos professores mais novos, Oliver Nigro os havia convidado para a festa - sob a condição de não contarem uma única palavra para o pai dele.
.
- Por mais que ache um absurdo, esta história meio que faz sentido - comentou Daniel, juntando-se à nós três e se sentando às sombras do passeio de pedra que cruzava o campus da Constantine de uma ponta à outra - Na segunda feira mesmo eu vi a Kara e o professor Novaz cochichando perto da Biblioteca... E quando o Dir. Nigro chegou, os dois mudaram de assunto rapidinho.
.
- Ah, que maravilha - resmungou Líon, fechando o seu pote de batatas no mesmo instante e cruzando os braços com impaciência - Se não me bastasse ter que aturar o idiota do Oliver nesta ''festa'', ainda por cima ganho a professora de Educação Física metida à carrasco como brinde!
.
Daniel, que até então não fazia a minima idéia do convite que eu havia feito aos gêmeos no sábado, pareceu se engasgar com a própria saliva quando finalmente percebeu sobre o quê o novato estava falando.
.
- Como é que é?! Vocês três estão planejando ir para a ''Festa dos Veteranos''?
.
- É...
.
Antes mesmo que eu completasse a frase, o Capitão da Equipe de Lutas se levantou e apoiou-se na coluna de tijolos mais próxima, só para - meio segundo depois - se dobrar ao meio de tanto rir.
.
- Eu não acredito! - exclamou o rapaz, tentando respirar entre uma gargalhada e outra - Adrian ''Esquisito'' Regis indo à uma balada organizada por Oliver Nigro, seu Arqui-Inimigo desde o maternal?! Céus... Essa eu tenho que ver!
.
- Sabe, isto realmente não é grande coisa - murmurei à contra-gosto, tão constrangido pela reação de Daniel que precisei de alguns instantes para entender o que ele estava dizendo.
.
- Espere aí... Quer dizer que você também vai para a ''Festa dos Veteranos''?!
.
- Mas é claro - esbravejou o garoto, se aproximando de mim em um pulo e me dando um forte tapa nas costas - E depois desta sua novidade, tenho certeza que não serei o único da turma à mudar os planos para o sábado que vem, pode apostar!
.
- Com certeza - resmungou Líon, que contrariava todas as minhas expectativas e parecia ficar mais amargo à cada minuto que se passava - E, aproveitando esta brilhante oportunidade, por que não chamamos mais gente... Como, sei lá, os pirralhos da 9ª Série?! Afinal, tudo o que precisamos é que esta festa seja um sucesso, não é mesmo?
.
Dizendo isto, o garoto reuniu todas as suas coisas em tempo recorde e rumou à passos largos na direção do Prédio Principal da Constantine, sem olhar uma única vez para trás - nem para dizer ''até daqui á pouco'' para sua gêmea.
.
- Mas qual foi o bicho que mordeu ele?
.
Eu não sabia o que responder para o Daniel.
.
Para falar a verdade, nunca vira o novato se comportar de forma tão rude e grosseira em todo este tempo. Ao olhar para Serina, que encarava o espaço vazio deixado pelo irmão com uma expressão atordoada no rosto, só confirmei o que já suspeitava: aquile tipo de atitude não era normal.
.
Por um breve segundo, quis me levantar das sombras do nosso abrigo no passeio da Academia e correr até onde Líon estava para lhe garantir que, se ele se sentisse mais confortável, nós não iríamos na Festa. Tudo o que faríamos no sábado seria alugar alguns dvd's na locadora e passar à noite na Casa-de-Bombeiros fazendo uma sessão pipoca de filmes B.
.
Só que eu me detive. E não o segui.
.
Até por que, eu sabia que eu estava tentando fazer o melhor para ele e para a irmã - mesmo que, agora, ele não soubesse. Deixá-lo sozinho, sem ter contato com outras pessoas, era exatamente o que Alexander Morton esperava que eu fizesse.
.
Mas eu não ia cair naquele jogo.
.
Por isso eu passei por cima do meu orgulho e aceitei o convite forçado feito pelo Oliver. Se fosse preciso me humilhar na frente de todos os Privilegiados da escola, só para manter os dois à salvos das garras daquele aprendiz idiota de demônio, com certeza eu o faria - sem pensar duas vezes.
.
Pois esta era a minha obrigação... Não só como um Arcano.
.
Mas, principalmente, como um Amigo.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Capítulo 14 - Encontro [Completo]

Logo pela manhã, percebi que aquele sábado seria atípico.
.
Do lado de fora da Casa-de-Bombeiros, uma chuva torrencial caía pelas ruas de Ventura, e nuvens negras e carregadas espiralavam erroneamente sobre o outrora céu azul da cidade. No café da manhã, nem eu, nem Cirus ou Angel trocamos palavra alguma. A tensão do que iríamos fazer pairava de forma ameaçadora diante de nossas cabeças, e a forte sensação de impotência que me tomava desde o início da semana não estava ajudando em nada para melhorar o clima na mesa.
.
- Acho que está na hora de irmos - anunciou Cirus com sua voz grave, quebrando o silêncio que se instaurava na cozinha assim que os ponteiros do relógio de parede marcaram oito horas em ponto.
.
Maquinalmente, nós três nos levantamos e fomos para a garagem - Angel responsável por abrir o portão enquanto meu pai dava vida ao velho Mustang 64.
.
Antes de entrar no banco traseiro do carro, olhei demoradamente para o meu skate encostado displiscente em nossa máquina de lavar roupas. Quase que de imediato, me lembrei do dia em que Alexander Morton manipulara as minhas emoções e as de Oliver Nigro, só para demonstrar o que poderia acontecer se eu interrompesse os seus planos de vingança.
.
- Relaxa, Adrian... Nada de mal vai acontecer hoje - murmurou Angel, interpretando certo a preocupação que se refletia em meu rosto.
.
Meneando a cabeça em sinal de aceitação, entrei no automóvel vermelho e esperei meu pai dar a partida e manobrar a nossa saída da garagem escurecida pela tempestade.
.
Para nossa sorte, Cirus conhecia muito bem o caminho; então, em menos de 30 minutos fazíamos a curva na Rodovia Principal dos Três Estados e entrávamos no espaçoso - e temporariamente alagado - pátio gramado da gigantesca casa vitoriana que abrigava o Hospital Psiquiátrico de Santa Fé.
.
Correndo para não ficarmos ensopados, invadimos o delicado hall de entrada da casa de repouso, respigando gotas de chuva por todo o chão encarpetado e caminhando com cautela na direção do fim do saguão - onde, por detrás de uma extensa bancada de granito, uma enfermeira velha e atarracada nos aguardava, sua expressão indicando poucos amigos.
.
- O que os senhores desejam? - retrucou a mulher com maus modos, antes mesmo de chegarmos ao balcão de informações.
.
- Bom dia - cumprimentou Cirus, não se deixando intimidar pela grosseria gratuita da enfermeira - estamos aqui visitar a paciente Suzana N. Leniscky.
.
Por um breve segundo, a recepcionista franziu toda a sua cara ofídica canhestramente, seus olhos aquosos nos avaliando de cima à baixo com desconfiança.
.
- A senhorita Leniscky não pode receber visitas de amigos - resmungou a mulher, nos encarando com desprezo - Restrições parentais... acho que compreendem.
.
Não, eu não compreendia... E estava prestes a dar meia volta daquele lugar quando, em um átimo de segundo, Angel debruçou-se sobre o balcão de mármore e segurou com força as duas mãos da recepcionista – seus olhos grandes e azuis fixos no rosto enrugado da mulher.
.
- Você irá nos levar ao quarto onde está a paciente Leniscky – sussurrou minha tia, sua voz clara e hipnotizante como o canto de um pássaro – E não irá contar nada disso a ninguém. .. A senhora entendeu o que estou dizendo?
.
Com o rosto estático de admiração, a velha recepcionista balançou molemente a cabeça em concordância, se libertando sem pressa do aperto de Angelina e pegando um grosso molho de chaves guardado em um claviculário de madeira trabalhada fixado na parede à suas costas.
.
- Como... Como você fez isto?! – exclamei, não acreditando no que os meus olhos haviam acabado de ver.
.
- Isto não foi nada! – retrucou Cirus com impaciência – E escute aqui mocinha, você sabe muito bem o que eu penso quanto a usarmos este tipo de artifício em pessoas normais, não?
.
- Eu sei mano, eu sei... – respondeu Angel, massageando as têmporas com as pontas de seus dedos. – Você sabe que eu também odeio ter que fazer isto... Mas hoje era necessário.
.
Sem trocar uma única palavra, os dois bufarão em uníssono e seguirão a velha enfermeira encarquilhada por um longo corredor que se estendia ao lado esquerdo do Hall de Entrada da casa de repouso. Não perdendo tempo, acompanhei Cirus e Angel a uns dois passos de distância, repassando mentalmente o que havia acabado de acontecer – ainda não sabendo ao certo se o momento realmente existira ou se não passava de um mero delírio de uma mente já à tempos não muito sã.
.
De qualquer forma, me peguei imaginando como tia Angelina havia conseguido induzir a recepcionista a fazer o que ela queria. Pois, sendo a minha imaginação ou não, ela havia usado um dom de Arcano que eu desconhecia e que meu pai não aprovava – o que significava que eu tinha que aprender a fazer aquilo de alguma forma.
.
- Por aqui, por favor – sibilou a senhora, apontando para uma longa escada em caracol, seus olhos aquosos ainda fixos e abobalhados.
.
Em completo silêncio, nós quatro rodopiamos até o topo, desembocando em um pequeno patamar retangular – suas pareces brancas cheias de rococós e cobertas de cima à baixo por vasos abarrotados de grandes e luxuriantes margaridas.
.
- Este é o quarto dela – disse a recepcionista, caminhando em passos lentos na direção da única porta presente no lugar, enquanto recolhia com dificuldade uma pequena chave do molho em suas mãos – Vocês têm meia hora... Entrem.
.
Sem o menor interesse no que iria acontecer, a mulher saiu da frente para podermos passar e fechou a porta atrás de nós com um ruidoso click. Um segundo depois, me vejo parado à entrada de um loft espaçoso e muito bem iluminado. Basicamente, o que imperava ali era o antigo, com direito a pé-direito alto, ornamentos em gesso e piso tipo piquê, rodeado de janelas longas e estreitas por todos os lados.
.
Seria um quarto típico para uma princesa se não fosse por um pequeno detalhe: o toque pessoal da própria Suzana N. Leniscky.
.
- Mas o que esta garota tem na cabeça?! - sussurrou Angel, seu rosto não escondendo nem um pouco a indgnação que sentia pela decoração implantada pela dona do lugar - Ela simplesmente acabou com isto aqui...
.
O que não deixava de ser verdade.
.
Afinal, a grande cama de dossel que se encontrava no meio do loft parecia não ver uma arrumação à séculos; amontoado-se pelas paredes, dezenas e mais centenas de ilustrações sombrias e macabras de caveiras, monstros obscuros e símbolos esquisitos se agrupavam uma em cima da outra como folhas mortas no outono - isso sem falar na figura solitária e magricela que se encolhia em uma pequena poltrona rosa no canto mais escuro do quarto.
.
- Hum... então essa é a noiva do demônio.
.
- Angelina! - exclamou Cirus, claramente constrangido pela situação em que se encontrava. - Será que você poderia ser um pouco menos rude, e expressar as suas opiniões um pouco mais baixo?
.
- Ah, mas nem à pau! - cuspiu minha tia, cruzando os braços com força por sobre o peito - A doida aqui simplesmente d-e-s-t-r-u-i-u o quarto dos sonhos de qualquer garota no mundo inteiro... Já são menos 15 pontos contra ela!
.
- Menos 15 pontos?! A coitada foi internada em uma Casa de Repouso...
.
Fazendo questão de ignorar os resmungos raivosos e as farpas trocadas por meu pai e Angel, me aproximei demoradamente da namorada de Alexander Morton, observando estupefado o estado atual da garota.
.
Assim como o quarto que ocupava no Hospital Psiquiátrico de Santa Fé, Suzana N. Leniscky um dia fora bonita. De longos cabelos prateados e grandes olhos azuis, sem dúvida alguma a menina deveria parar quarteirões no seus tempos aureos. Querem saber um detalhe assustador nisto tudo? Seu porte físico era muito parecido com o de minha tia. Porém, enquanto uma exalava joviedade e simpatia, a outra dava a impressão de estar se preparando para encarnar a Morte em alguma produção teatral de grandes proporções.
.
- Er... Senhorita Suzana - murmurei, não sabendo muito bem por onde começar - Será que podemos conversar?
.
Por um longo espaço de tempo, não obtive resposta alguma... E já estava prestes a desistir de qualquer contato quando, finalmente, a jovem desgrudou os olhos imensos do livro grosso e mofado que segurava com força em seu colo e se voltou para mim, como se tivesse acabado de perceber a minha presença em seu quarto.
.
- Quem são vocês? O que estão fazendo aqui?
.
A típica pergunta. Para minha sorte - antes que eu respondesse qualquer besteira - Cirus e Angel haviam parado de se comportar como dois pré-adolescentes e se postaram ao meu lado, obrigando a jovem a dividir sua atenção em nós três.
.
- Olá, Suzana - cumprimentou meu pai, da forma mais afável possível, se agachando perto da poltrona rosa e ficando na linha de visão da garota - Eu me chamo Cirus, e estes são o meu filho Adrian e minha irmã Angelina... Nós estamos aqui por que descobrimos pelo o quê você anda passando ultimamente e gostaríamos de oferecer a nossa ajuda.
.
- Que tipo de ajuda? - perguntou Suazana, obviamente entrando no estado de ''defensiva-agressiva'' - O que vocês pensam que sabem sobre mim? Eu não chamei ninguém... Não preciso de ninguém!
.
- É, dá para notar isto à quilômetros - disse Angel, a impaciência crescente e visível à cada segundo - Mas não é toda garota que tem o privilégio de receber continuamente as visitas do namorado morto, não é mesmo?! Me diz aí, qual é o seu segredo?
.
Se antes Suzana estava doentiamente pálida, agora ela ficara mortalmente lívida. Por um instante, pensei que ela iria arrancar o rosto de Angel usando apenas as suas unhas compridas e mal cuidadas, mas tudo o que a jovem fez foi segurar com ainda mais força o livro velho que tinha nas mãos e se levantar da poltrona, andando imperiosamente até sua cama antiga e desarrumada - o mais longe o possível de onde estávamos.
.
- Eu não sei do que você está falando - disse ela por fim, fazendo questão de não nos olhar no rosto. - Acho que estão cometendo um grande engano.
.
- Ah, não estamos não! - exclamou Angel, com direito a um leve bater de pernas irritadiço - Você sabe sobre o que estamos falando, e não vai adiantar nada tentar proteger aquele demônio que se passa por seu amiguinho... Nós vamos pegá-lo, ou não me chamo Angelina Regis!
.
- Nossa... você é uma louca mesmo, não?
.
E com aquela simples frase, Suzana N. Leniscky ativou uma verdadeira bomba atômica.
.
- Mas do quê você me chamou?! - antes que pudéssemos fazer qualquer coisa, Angel pulou sobre a garota como um gato e a empurrou com toda a sua força contra o colchão emaranhado - Não sou eu que estou presa em um Hospital Psiquiátrico!... Não sou eu que ando tendo encontros secretos com um namorado-demônio!... Quem é a louca aqui? Quem?
.
- Tudo bem! Tudo bem! Eu falo o que vocês quiserem... - gritou Suzana, entre uma e outra sacudida que levava - Mas tirem essa garota de cima de mim!
.
Em um milessegundo, Cirus e eu tiramos Angel de cima da garota e a empurramos na direção da poltrona rosa. Respirando com força, minha tia olhou com satisfação para as duas marcas arroxeadas que haviam ficado ao redor do pescoço pálido e mascilento de sua oponente, as mãos ainda se contorcendo como se fossem garras - prontas para voltarem ao trabalho no menor sinal de descuido meu ou do meu pai.
.
- Aonde você estava com a cabeça? - berrou Cirus, uma veia grossa e feia saltando bem no topo de sua testa.
.
- Ninguém me chama de louca e fica impune - comentou Angel, calma e friamente, seus olhos azuis ainda fixos na direção de Suzana - Nem mesmo se esse alguém estiver sob cuidados médicos...
.
- Acho que todos deveríamos nos acalmar - eu disse por fim, olhando para todos com extrema cautela.
.
Durante alguns minutos, tudo o que nós quatro fizemos foi apenas respirar. Se antes eu achava que aquele dia não ia dar em nada, agora eu tinha absoluta certeza. Tentando recolher um pouco do leite derramado, Cirus se aproximou cuidadosamente de Suzana e a encarou, seu corpo encobrindo de maneira estratégica a visão que a garota teria de minha tia descontrolada sentada à poucos metros de distância de sua cama.
.
- Pode parecer algo estúpido para se dizer agora, mas começamos com os dois pés esquerdos.
.
- Eu concordo plenamente - resmungou Suzana, os braços longos e finos apertados com força sobre o peito - Porém eu concordei que iria responder o que vocês quisessem, e é isto que vou fazer.
.
Atrás de nós, Angel soltou um moxoxo alto de descrença.
.
- Tudo bem - continuou a garota, fazendo questão de ignorar a grosseria de minha tia - Antes de qualquer coisa, eu gostaria de saber uma única coisa... Como vocês descobriram o que está acontecendo com o Alex?
.
Não havia acusação na voz de Suzana, apenas curiosidade. Tudo bem, seus olhos brilhavam loucamente e sua boca se erguia em um leve sorriso doentio, mas no fundo era apenas curiosidade.
.
- Hum, digamos que nós somos... ''especialistas'' em assuntos sobrenaturais - respondeu meu pai, sendo o mais sucinto (e vago) o possível - Mas, não querendo ser grosseiro, eu gostaria de ser um pouco mais direto...
.
- E com isto ele quer dizer ''ir logo ao assunto'' - disse Angel ao nosso lado, já recuperada de seu ataque, apesar de ainda irradiar uma fúria austera e gélida pelo ar ao seu redor - Será que você poderia nos dizer quando foi o seu primeiro encontro com Alexander Morton... depois que ele morreu?
.
Meneando a cabeça em aceitação, Suzana colocou o livro que ainda segurava de lado e nos encarou de forma deliberada, seu sorriso torto se aprofundando em um estado de profunda satisfação; obviamente, entrar em uma conversa sobre o seu namorado ''fantasma'' era um prazer para ela.
.
- Ah, o Alex... Sabiam que eu estava falando com ele quando aconteceu o acidente? - disse a garota sonhadoramente, seu corpo frágil parecendo vibrar de excitação - O doido conversava comigo enquanto dirigia o carro.
.
- Ele.. ele... estava com você no telefone quando... morreu? - perguntei, sentindo um gosto forte de bile começar a subir pela minha garganta - Sobre o que ele dizia?
.
- Nada demais... Só me pediu em casamento - respondeu Suzana, avaliando as grossas camadas de cutículas em suas unhas - Mas é claro que eu não o levei a sério, o cara estava completamente chapado! Ficava repetindo que aquele era ''o melhor dia da vida dele'', e que ''não via a hora de invadir o meu cobertor'' e ''brincar comigo''...
.
- Sim, claro - suspirou Cirus, ficando genuinamente vermelho pelo último comentário da garota - Porém, o Alexander por acaso te disse o por que de tanta alegria naquela noite?
.
- Ele estava comemorando - continuou a garota, como se aquilo fosse a coisa mais óbvia do mundo - Ao que parece, o tutor do estágio dele iria chamá-lo para se tornar fixo no hospital...
.
- O Dr. Biel?
.
- É, esse cara mesmo - disse Suzana, como se eu tivesse acabado de insultar a mãe dela - Não é engraçado que, no mesmo dia em que ele ofereceu o emprego dos sonhos para o Alex, os merdinhas dos filhos dele tenham feito o favor de matar o meu namorado?
.
Não, eu não achava nem um pouco engraçado.
.
E confesso que tive que me controlar bastante para não dar uma de minha tia e avançar em cima daquela idiota naquele instante. Sim... pois o estúpido do Morton é quem pega no volante mais alto do que uma girafa, e a culpa de tudo é dos gêmeos; fazia todo o sentido.
.
- Mas a vida é feita de momentos engraçados - prosseguiu a menina, seu par de olhos azuis fixos em mim, sua voz soando cada vez mais amarga - Em um minuto, estou recusando pela décima oitava vez o pedido de casamento dele; no outro, tudo o que eu escuto são pneus de carro cantando e o barulho de metal se espatifando no asfalto...
.
Nem Cirus nem Angel trocaram palavra alguma.
.
Todos sabíamos que aquele era o grande momento de Suzana N. Lenisky. Ela iria desabafar tudo o que escondeu para si própria nos últimos dois meses... E nós finalmente iríamos entender, por menos que fosse, a obsessão vingativa de Alexander Morton por Líon e Serina Biel.
.
''Eu nunca gritei tanto quanto naquela noite...
.
Acho que chorei sem parar durante uma semana inteira. Todas as vezes que eu me deitava na cama e me preparava para dormir, as lembranças escruciantes dos sons do acidente imundavam a minha mente. Eu não comia, não bebia e não saia do meu quarto para nada. Eu sabia que estava definhando só de ver as expressões que os meus pais faziam quando tentavam conversar comigo.
.
O que é estranho, por que eu gostava daquilo...
.
Gostava de ver que o meu sofrimento fazia os outros sofrerem também. Gostava de saber que não estava sozinha naquilo - por mais que possa parecer loucura.''
.
Por um milissegundo, congelei aonde estava, imaginando que Angel fosse fazer algum comentário estúpido sobre o que Suzana havia acabado de confessar. Mas, ao ver a expressão dura de meu pai, acho que ela pensou duas vezes antes de dizer qualquer tipo de bobagem.
.
''Eu não fui no funeral, nem no enterro'', continuou ela, suas mãos acariciando distraidamente a capa negra do velho diário ao seu lado, ''Aquele lugar estava cheia de hipócritas. Ninguém conhecia o Alex como eu. Ninguém se importava com ele, apoiava tudo o que ele fazia, como eu...
.
... e fui eu à primeira pessoa que ele escolheu para vê-lo renovado.''
.
Mais uma longa pausa.
.
Eu não sabia sobre o que ela queria dizer com ''renovado'', mas quando o assunto em questão era Alexander Morton, apostava tudo o que tinha que não deveria ser nada bom.
.
- Suzana - disse o meu pai, cruzando os dedos das mãos e os levando para a ponta de seu queixo - Quando foi que o Alexander apareceu para você pela primeira vez?... O que foi que ele queria lhe falar?
.
A garota encarou Cirus com um estranho brilho no olhar. Eu podia sentir a excitação doentia que ela irradiava se espalhar como um gás tóxico por todo o cômodo.
.
''Sete dias.
.
Este foi o tempo que levei para reencontrar o Alex.
.
Eu estava deitada em minha cama, querendo que tudo acabasse... E foi aí que eu senti que estava sendo observada. Já era tarde da noite, e não se podia escutar uma alma viva. Olhei para janela e não vi nada. Quando me virei, lá estava ele, jogado sobre as minhas cobertas - me espiando, como sempre fazia.
.
Minha nossa, foi táo maravilhoso. Tão... Surreal!
.
Em nenhum momento pensei em gritar.
.
Eu só queria tocá-lo de novo. Beijá-lo, e senti-lo dentro de mim.''
.
- Será que podemos cortar as partes proibidas para menores? - perguntou Angel, seu rosto tomado por nojo e reprovação.
.
Suzana olhou para minha tia com uma expressão de raiva controlada, mas acabou fazendo o que ela pedia.
.
''Quando terminamos de matar as saudades, eu perguntei o que estava acontecendo. Afinal, como ele poderia estar no meu quarto?
.
Foi aí que o Alex me disse que não sabia como, mas ele de alguma forma havia enganara a morte. Ao invés de se perder junto com o seu corpo, ele continuava ''vivendo''. E o melhor: podia fazer coisas que nunca poderíamos imaginar serem possíveis...
.
... até agora.''
.
Mais uma vez, a garota tocou o seu pescoço e, sem disfarçar o rancor, dirigiu à tia Angelina o seu olhar mais sombrio.
.
- Foi só isso que ele falou? - inquiriu o meu pai, tentando amenizar a tensão entre as duas.
.
- Não... é claro que não - respondeu a garota, um sorriso malvado bricando em seus lábios - Ele disse que iria atrás dos bastardos que mataram ele... e depois, iria voltar para me buscar.
.
- Claro - resfolegou Angel, colocando-se de pé e cerrando suas mãos em punho - Isto foi antes de você dar com a lingua nos dentes para os seus pais e eles perceberem a doida psicótica que haviam criado!
.
- Já temos o suficiente - disse Cirus para mim, colocando-se apressado na frente de Suzana e puxando minha tia na direção da porta.
.
- Ele vai me encontrar! Eu sei disto - gritou a menina, seu rosto ilumiando de um triunfo perturbado - E nós vamos fugir deste Inferno. Nada vai nos deter!
.
Antes de sair do cômodo, me detive em frente da cama e observei o diário que estava jogado ao lado de Suzana. Algo dentro de mim me impelia até ele, tão poderoso quanto ímãs de poralidades diferentes. Eu precisava vê-lo. Eu precisava saber o que aquelas páginas escondiam - só não entendia por quê.
.
- Vamos logo, Adrian! - esbravejou Angel, sua voz enraivecida já vindo do corredor.
.
Não perdendo tempo, girei em meus calcanhares e segui à passos largos o caminho que os dois haviam tomado.
.
Quando atingimos a entrada do Hospital Psiquiátrico, a chuva tinha dado uma trégua. Mesmo assim, corremos para dentro do Mustang e partimos sem demora, como se o ''dilúvio'' que caia mais cedo continuasse.
.
Pelo resto da viajem, nós três mantivemos o silêncio da ida. Cirus estava perdido em pensamentos e Angel continuava furiosa demais para falar qualquer coisa. Por mim, a quietude estava ótima. Só assim eu colocava as coisas no seu devido lugar, sem ninguém me interrompendo.
.
...Acho que chorei sem parar durante uma semana inteira. Todas as vezes que eu me deitava na cama e me preparava para dormir, as lembranças escruciantes dos sons do acidente imundavam a minha mente. Eu não comia, não bebia e não saia do meu quarto para nada.
.
O depoimento de Suzana não me saia da cabeça. A cada respiração minha, as palavras me voltavam com força à mente, e eu sentia todo o meu corpo se enrijecer. Assim como fizera com a própria namorada, Alexander Morton estava obrigando Líon e Serina à se escoderem do mundo. E depois de ver o estado atual que a garota se encontrava, eu não podia deixar aquela situação continuar.
.
Eu tinha que fazer alguma coisa.
.
- Então - suspirou meu pai, suas atenções ainda voltadas para o trânsito - O que vamos fazer agora?
.
Como que por encanto, me lembrei da folha timbrada que jazia amarrotada ao lado do meu cavalete. Na mesma hora, percebi que tirar os irmãos Biel de seu confinamento seria mais fácil do que eu pensava.
.
- Tenho uma ótima idéia - respondi, me obrigando pela primeira vez a agradecer Oliver Nigro por suas armações estúpidas.

domingo, 1 de agosto de 2010

Capítulo 14 - Encontro

Logo pela manhã, percebi que aquele sábado seria atípico.
.
Do lado de fora da Casa-de-Bombeiros, uma chuva torrencial caía pelas ruas de Ventura, e nuvens negras e carregadas espiralavam erroneamente sobre o outrora céu azul da cidade. No café da manhã, nem eu, nem Cirus ou Angel trocamos palavra alguma. A tensão do que iríamos fazer pairava de forma ameaçadora diante de nossas cabeças, e a forte sensação de impotência que me tomava desde o início da semana não estava ajudando em nada para melhorar o clima na mesa.
.
- Acho que está na hora de irmos - anunciou Cirus com sua voz grave, quebrando o silêncio que se instaurava na cozinha assim que os ponteiros do relógio de parede marcaram oito horas em ponto.
.
Maquinalmente, nós três nos levantamos e fomos para a garagem - Angel responsável por abrir o portão enquanto meu pai dava vida ao velho Mustang 64.
.
Antes de entrar no banco traseiro do carro, olhei demoradamente para o meu skate encostado displiscente em nossa máquina de lavar roupas. Quase que de imediato, me lembrei do dia em que Alexander Morton manipulara as minhas emoções e as de Oliver Nigro, só para demonstrar o que poderia acontecer se eu interrompesse os seus planos de vingança.
.
- Relaxa, Adrian... Nada de mal vai acontecer hoje - murmurou Angel, interpretando certo a preocupação que se refletia em meu rosto.
.
Meneando a cabeça em sinal de aceitação, entrei no automóvel vermelho e esperei meu pai dar a partida e manobrar a nossa saída da garagem escurecida pela tempestade.
.
Para nossa sorte, Cirus conhecia muito bem o caminho; então, em menos de 30 minutos fazíamos a curva na Rodovia Principal dos Três Estados e entrávamos no espaçoso - e temporariamente alagado - pátio gramado da gigantesca casa vitoriana que abrigava o Hospital Psiquiátrico de Santa Fé.
.
Correndo para não ficarmos ensopados, invadimos o delicado hall de entrada da casa de repouso, respigando gotas de chuva por todo o chão encarpetado e caminhando com cautela na direção do fim do saguão - onde, por detrás de uma extensa bancada de granito, uma enfermeira velha e atarracada nos aguardava, sua expressão indicando poucos amigos.
.
- O que os senhores desejam? - retrucou a mulher com maus modos, antes mesmo de chegarmos ao balcão de informações.
.
- Bom dia - cumprimentou Cirus, não se deixando intimidar pela grosseria gratuita da enfermeira - estamos aqui visitar a paciente Suzana N. Leniscky.
.
Por um breve segundo, a recepcionista franziu toda a sua cara ofídica canhestramente, seus olhos aquosos nos avaliando de cima à baixo com desconfiança.
.
- A senhorita Leniscky não pode receber visitas de amigos - resmungou a mulher, nos encarando com desprezo - Restrições parentais... acho que compreendem.
.
Não, eu não compreendia... E estava prestes a dar meia volta daquele lugar quando, em um átimo de segundo, Angel debruçou-se sobre o balcão de mármore e segurou com força as duas mãos da recepcionista – seus olhos grandes e azuis fixos no rosto enrugado da mulher.
.
- Você irá nos levar ao quarto onde está a paciente Leniscky – sussurrou minha tia, sua voz clara e hipnotizante como o canto de um pássaro – E não irá contar nada disso a ninguém. .. A senhora entendeu o que estou dizendo?
.
Com o rosto estático de admiração, a velha recepcionista balançou molemente a cabeça em concordância, se libertando sem pressa do aperto de Angelina e pegando um grosso molho de chaves guardado em um claviculário de madeira trabalhada fixado na parede à suas costas.
.
- Como... Como você fez isto?! – exclamei, não acreditando no que os meus olhos haviam acabado de ver.
.
- Isto não foi nada! – retrucou Cirus com impaciência – E escute aqui mocinha, você sabe muito bem o que eu penso quanto a usarmos este tipo de artifício em pessoas normais, não?
.
- Eu sei mano, eu sei... – respondeu Angel, massageando as têmporas com as pontas de seus dedos. – Você sabe que eu também odeio ter que fazer isto... Mas hoje era necessário.
.
Sem trocar uma única palavra, os dois bufarão em uníssono e seguirão a velha enfermeira encarquilhada por um longo corredor que se estendia ao lado esquerdo do Hall de Entrada da casa de repouso. Não perdendo tempo, acompanhei Cirus e Angel a uns dois passos de distância, repassando mentalmente o que havia acabado de acontecer – ainda não sabendo ao certo se o momento realmente existira ou se não passava de um mero delírio de uma mente já à tempos não muito sã.
.
De qualquer forma, me peguei imaginando como tia Angelina havia conseguido induzir a recepcionista a fazer o que ela queria. Pois, sendo a minha imaginação ou não, ela havia usado um dom de Arcano que eu desconhecia e que meu pai não aprovava – o que significava que eu tinha que aprender a fazer aquilo de alguma forma.
.
- Por aqui, por favor – sibilou a senhora, apontando para uma longa escada em caracol, seus olhos aquosos ainda fixos e abobalhados.
.
Em completo silêncio, nós quatro rodopiamos até o topo, desembocando em um pequeno patamar retangular – suas pareces brancas cheias de rococós e cobertas de cima à baixo por vasos abarrotados de grandes e luxuriantes margaridas.
.
- Este é o quarto dela – disse a recepcionista, caminhando em passos lentos na direção da única porta presente no lugar, enquanto recolhia com dificuldade uma pequena chave do molho em suas mãos – Vocês têm meia hora... Entrem.
.
Sem o menor interesse no que iria acontecer, a mulher saiu da frente para podermos passar e fechou a porta atrás de nós com um ruidoso click. Um segundo depois, me vejo parado à entrada de um loft espaçoso e muito bem iluminado. Basicamente, o que imperava ali era o antigo, com direito a pé-direito alto, ornamentos em gesso e piso tipo piquê, rodeado de janelas longas e estreitas por todos os lados.
.
Seria um quarto típico para uma princesa se não fosse por um pequeno detalhe: o toque pessoal da própria Suzana N. Leniscky.
.
- Mas o que esta garota tem na cabeça?! - sussurrou Angel, seu rosto não escondendo nem um pouco a indgnação que sentia pela decoração implantada pela dona do lugar - Ela simplesmente acabou com isto aqui...
.
O que não deixava de ser verdade.
.
Afinal, a grande cama de dossel que se encontrava no meio do loft parecia não ver uma arrumação à séculos; amontoado-se pelas paredes, dezenas e mais centenas de ilustrações sombrias e macabras de caveiras, monstros obscuros e símbolos esquisitos se agrupavam uma em cima da outra como folhas mortas no outono - isso sem falar na figura solitária e magricela que se encolhia em uma pequena poltrona rosa no canto mais escuro do quarto.
.
- Hum... então essa é a noiva do demônio.
.
- Angelina! - exclamou Cirus, claramente constrangido pela situação em que se encontrava. - Será que você poderia ser um pouco menos rude, e expressar as suas opiniões um pouco mais baixo?
.
- Ah, mas nem à pau! - cuspiu minha tia, cruzando os braços com força por sobre o peito - A doida aqui simplesmente d-e-s-t-r-u-i-u o quarto dos sonhos de qualquer garota no mundo inteiro... Já são menos 15 pontos contra ela!
.
- Menos 15 pontos?! A coitada foi internada em uma Casa de Repouso...
.
Fazendo questão de ignorar os resmungos raivosos e as farpas trocadas por meu pai e Angel, me aproximei demoradamente da namorada de Alexander Morton, observando estupefado o estado atual da garota.
.
Assim como o quarto que ocupava no Hospital Psiquiátrico de Santa Fé, Suzana N. Leniscky um dia fora bonita. De longos cabelos prateados e grandes olhos azuis, sem dúvida alguma a menina deveria parar quarteirões no seus tempos aureos. Querem saber um detalhe assustador nisto tudo? Seu porte físico era muito parecido com o de minha tia. Porém, enquanto uma exalava joviedade e simpatia, a outra dava a impressão de estar se preparando para encarnar a Morte em alguma produção teatral de grandes proporções.
.
- Er... Senhorita Suzana - murmurei, não sabendo muito bem por onde começar - Será que podemos conversar?
.
Por um longo espaço de tempo, não obtive resposta alguma... E já estava prestes a desistir de qualquer contato quando, finalmente, a jovem desgrudou os olhos imensos do livro grosso e mofado que segurava com força em seu colo e se voltou para mim, como se tivesse acabado de perceber a minha presença em seu quarto.
.
- Quem são vocês? O que estão fazendo aqui?
.
A típica pergunta. Para minha sorte - antes que eu respondesse qualquer besteira - Cirus e Angel haviam parado de se comportar como dois pré-adolescentes e se postaram ao meu lado, obrigando a jovem a dividir sua atenção em nós três.
.
- Olá, Suzana - cumprimentou meu pai, da forma mais afável possível, se agachando perto da poltrona rosa e ficando na linha de visão da garota - Eu me chamo Cirus, e estes são o meu filho Adrian e minha irmã Angelina... Nós estamos aqui por que descobrimos pelo o quê você anda passando ultimamente e gostaríamos de oferecer a nossa ajuda.
.
- Que tipo de ajuda? - perguntou Suazana, obviamente entrando no estado de ''defensiva-agressiva'' - O que vocês pensam que sabem sobre mim? Eu não chamei ninguém... Não preciso de ninguém!
.
- É, dá para notar isto à quilômetros - disse Angel, a impaciência crescente e visível à cada segundo - Mas não é toda garota que tem o privilégio de receber continuamente as visitas do namorado morto, não é mesmo?! Me diz aí, qual é o seu segredo?
.
Se antes Suzana estava doentiamente pálida, agora ela ficara mortalmente lívida. Por um instante, pensei que ela iria arrancar o rosto de Angel usando apenas as suas unhas compridas e mal cuidadas, mas tudo o que a jovem fez foi segurar com ainda mais força o livro velho que tinha nas mãos e se levantar da poltrona, andando imperiosamente até sua cama antiga e desarrumada - o mais longe o possível de onde estávamos.
.
- Eu não sei do que você está falando - disse ela por fim, fazendo questão de não nos olhar no rosto. - Acho que estão cometendo um grande engano.
.
- Ah, não estamos não! - exclamou Angel, com direito a um leve bater de pernas irritadiço - Você sabe sobre o que estamos falando, e não vai adiantar nada tentar proteger aquele demônio que se passa por seu amiguinho... Nós vamos pegá-lo, ou não me chamo Angelina Regis!
.
- Nossa... você é uma louca mesmo, não?
.
E com aquela simples frase, Suzana N. Leniscky ativou uma verdadeira bomba atômica.
.
- Mas do quê você me chamou?! - antes que pudéssemos fazer qualquer coisa, Angel pulou sobre a garota como um gato e a empurrou com toda a sua força contra o colchão emaranhado - Não sou eu que estou presa em um Hospital Psiquiátrico!... Não sou eu que ando tendo encontro secretos com um namorado-demônio!... Quem é a louca aqui? Quem?
.
- Tudo bem! Tudo bem! Eu falo o que vocês quiserem... - gritou Suzana, entre uma e outra sacudida que levava - Mas tirem essa garota de cima de mim!
.
2ª PARTE
.
Em um milessegundo, Cirus e eu tiramos Angel de cima da garota e a empurramos na direção da poltrona rosa. Respirando com força, minha tia olhou com satisfação para as duas marcas arroxeadas que haviam ficado ao redor do pescoço pálido e mascilento de sua oponente, as mãos ainda se contorcendo como se fossem garras - prontas para voltarem ao trabalho no menor sinal de descuido meu ou do meu pai.
.
- Aonde você estava com a cabeça? - berrou Cirus, uma veia grossa e feia saltando bem no topo de sua testa.
.
- Ninguém me chama de louca e fica impune - comentou Angel, calma e friamente, seus olhos azuis ainda fixos na direção de Suzana - Nem mesmo se esse alguém estiver sob cuidados médicos...
.
- Acho que todos deveríamos nos acalmar - eu disse por fim, olhando para todos com extrema cautela.
.
Durante alguns minutos, tudo o que nós quatro fizemos foi apenas respirar. Se antes eu achava que aquele dia não ia dar em nada, agora eu tinha absoluta certeza. Tentando recolher um pouco do leite derramado, Cirus se aproximou cuidadosamente de Suzana e a encarou, seu corpo encobrindo de maneira estratégica a visão que a garota teria de minha tia descontrolada sentada à poucos metros de distância de sua cama.
.
- Pode parecer algo estúpido para se dizer agora, mas começamos com os dois pés esquerdos.
.
- Eu concordo plenamente - resmungou Suzana, os braços longos e finos apertados com força sobre o peito - Porém eu concordei que iria responder o que vocês quisessem, e é isto que vou fazer.
.
Atrás de nós, Angel soltou um moxoxo alto de descrença.
.
- Tudo bem - continuou a garota, fazendo questão de ignorar a grosseria de minha tia - Antes de qualquer coisa, eu gostaria de saber uma única coisa... Como vocês descobriram o que está acontecendo com o Alex?
.
Não havia acusação na voz de Suzana, apenas curiosidade. Tudo bem, seus olhos brilhavam loucamente e sua boca se erguia em um leve sorriso doentio, mas no fundo era apenas curiosidade.
.
- Hum, digamos que nós somos... ''especialistas'' em assuntos sobrenaturais - respondeu meu pai, sendo o mais sucinto (e vago) o possível - Mas, não querendo ser grosseiro, eu gostaria de ser um pouco mais direto...
.
- E com isto ele quer dizer ''ir logo ao assunto'' - disse Angel ao nosso lado, já recuperada de seu ataque, apesar de ainda irradiar uma fúria austera e gélida pelo ar ao seu redor - Será que você poderia nos dizer quando foi o seu primeiro encontro com Alexander Morton... depois que ele morreu?
.
Meneando a cabeça em aceitação, Suzana colocou o livro que ainda segurava de lado e nos encarou de forma deliberada, seu sorriso torto se aprofundando em um estado de profunda satisfação; obviamente, entrar em uma conversa sobre o seu namorado ''fantasma'' era um prazer para ela.
.
- Ah, o Alex... Sabiam que eu estava falando com ele quando aconteceu o acidente? - disse a garota sonhadoramente, seu corpo frágil parecendo vibrar de excitação - O doido conversava comigo enquanto dirigia o carro.
.
- Ele.. ele... estava com você no telefone quando... morreu? - perguntei, sentindo um gosto forte de bile começar a subir pela minha garganta - Sobre o que ele dizia?
.
- Nada demais... Só me pediu em casamento - respondeu Suzana, avaliando as grossas camadas de cutículas em suas unhas - Mas é claro que eu não o levei a sério, o cara estava completamente chapado! Ficava repetindo que aquele era ''o melhor dia da vida dele'', e que ''não via a hora de invadir o meu cobertor'' e ''brincar comigo''...
.
- Sim, claro - suspirou Cirus, ficando genuinamente vermelho pelo último comentário da garota - Porém, o Alexander por acaso te disse o por que de tanta alegria naquela noite?
.
- Ele estava comemorando - continuou a garota, como se aquilo fosse a coisa mais óbvia do mundo - Ao que parece, o tutor do estágio dele iria chamá-lo para se tornar fixo no hospital...
.
- O Dr. Biel?
.
- É, esse cara mesmo - disse Suzana, como se eu tivesse acabado de insultar a mãe dela - Não é engraçado que, no mesmo dia em que ele ofereceu o emprego dos sonhos para o Alex, os merdinhas dos filhos dele tenham feito o favor de matar o meu namorado?
.
Não, eu não achava nem um pouco engraçado.
.
E confesso que tive que me controlar bastante para não dar uma de minha tia e avançar em cima daquela idiota naquele instante. Sim... pois o estúpido do Morton é quem pega no volante mais alto do que uma girafa, e a culpa de tudo é dos gêmeos; fazia todo o sentido.
.
- Mas a vida é feita de momentos engraçados - prosseguiu a menina, seu par de olhos azuis fixos em mim, sua voz soando cada vez mais amarga - Em um minuto, estou recusando pela décima oitava vez o pedido de casamento dele; no outro, tudo o que eu escuto são pneus de carro cantando e o barulho de metal se espatifando no asfalto...
.
Nem Cirus nem Angel trocaram palavra alguma.
.
Todos sabíamos que aquele era o grande momento de Suzana N. Lenisky. Ela iria desabafar tudo o que escondeu para si própria nos últimos dois meses... E nós finalmente iríamos entender, por menos que fosse, a obsessão vingativa de Alexander Morton por Líon e Serina Biel.
.
''Eu nunca gritei tanto quanto naquela noite...
.
CONTINUA

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Capítulo 13 - O Despertar

Era noite, e o bosque estava escuro como breu. O topo dos grandes eucaliptos se escondiam no infinito negro à minha cabeça, e uma névoa fina e rastejante impregnava-se no musgo aos meus pés, formando um imenso oceano verde e branco.
.
Eu sabia que estava na Reserva Florestal de Ventura.
.
Tudo naquele lugar, desde as árvores até o formato das elevações do terreno mais à frente, me eram familiar. O que não sabia, na verdade, era o que eu estava fazendo ali, parado no meio do nada.
.
- Achei que nunca chegaria... - sussurou uma voz feminina, clara e musical, bem atrás de mim.
.
Sobressaltado, virei-me com pressa, preparado para atacar o que estivesse à espreita. Só não contava encontar com Serina, sentada tranquila sobre as raízes de um imponente eucalipto, os cabelos cor-de-chocolate ondulando ao seu redor. Mesmo nas sombras, sua pele morena irradiava um brilho dourado e quente, intensificado pelo belo vestido marfim que usava.
.
- Eu...eu... eu não esperava lhe encontrar aqui - respondi, mal disfarçando minha surpresa.
.
Sem se deixar abalar pelo meu mau jeito, a garota se levantou da base da árvore com tal leveza que me pareceu que ela nem havia feito algum esforço. Antes que eu pudesse pensar em alguma coisa, Serina já estava diante de mim, seu rosto angelical apenas à centímetros de distância do meu.
.
- Você é bonito - disse ela simplesmente, erguendo a mão direita com delicadeza e acariciando minha face.
.
Não posso descrever com palavras tudo o que senti naquele momento. Para falar a verdade, acho até que não tenho coragem de contar algumas coisas que pensei quando ela me tocou. O que eu posso dizer é que meu corpo reagiu das maneiras mais estranhas... Meu coração disparou como cavalos em uma corrida, meu sangue ferveu como se eu ardesse em febre e minha garganta se fechou - me obrigando a respirar por um breve e lento arquejo.
.
- Me desculpe - murmurei, enquanto ela continuava a explorar o meu rosto com as mãos. Para meu espanto, Serina aproximou-se mais um passo de mim e encostou a sua bela cabeça em meus ombros.
.
Foi aí que entrei em parafuso.
.
Quase que tomado por uma força sobrenatural, apertei a garota firmemente entre os meus braços e mergulhei o meu nariz na base suave e perfeita de seu pescoço. Com um profundo suspiro, inspirei todo o perfume adocicado que sua pele castanha exalava, correndo os meus dedos com cuidado pelos seus cabelos e por suas costas.
.
E assim ficamos os dois, por um tempo que me pareceu uma eternidade... até que toda a cena mudou em um piscar.
.
A névoa, que antes era alva e rasteira, começou a se elevar perigosamente - ganhando um mórbido tom de chumbo. Um vento frio e úmido vergastou os nossos cabelos, ao passo que a estranha sensação que eu havia sentido à um mês na piscina da Constantine começou a tomar conta do meu corpo novamente.
.
Rápido como um relâmpago, coloquei Serina sob a proteção de minhas costas e me agachei, me preparando para o ataque que estava por vir. Mesmo sem poder vê-la, eu sabia que a garota deveria estar congelada no lugar - suas mãos, apoiadas em meus braços, estavam gélidas e escorregadias.
.
- Não se preocupe, vai ficar tudo bem... - disse em um tom baixo, mesmo sem ter plena convixão do mesmo.
.
Vasculhei a floresta à minha frente, procurando por qualquer sinal da coisa que se aproximava. Mesmo forçando os meus olhos ao máximo, eu não enxergava nada a não ser as árvores e a neblina. Aquilo não me tranquilizou. Mesmo não o vendo, eu sentia que havia algo por ali, espreitando a mim e a garota - só esperando o momento certo para aparecer.
.
E ele apareceu... mais cedo do que eu esperava, e muito mais rápido do que eu julgava ser capaz.
.
Surgindo em meio a neblina, Alexander Morton emergiu do espesso mar branco-pérola, caminhando lentamente na direção da campina em que eu e Serina estávamos. O rapaz trajava apenas uma velha calça de brim preta e seus cabelos ruivos ricocheteavam no alto de sua cabeça como violentas chamas vivas. Os seus olhos, negros e com as pupilas dilatas iguais à de uma fera em caça, transmitiam uma frieza perversa que destoava por completo do rosto bondoso; um verdadeiro lobo na pele de cordeiro. Muito mais fatal e cruel.
.
- Quem é ele? - perguntou Serina, sua voz cantada tomada de pânico.
.
- Não tenha medo... Tudo vai se resolver.
.
Ao escutar nosso pequeno diálogo, o demônio parou e inclinou a cabeça para o lado. Seu rosto estava impassível, livre de qualquer expressão. A esta altura, eu já podia imaginar o que estava para acontecer. Com um último impulso, me afastei brevemente de Serina, colocando-me mais à frente - dando uma chance, por menor que fosse, para a garota escapar.
.
Por um minuto, ficamos parados - apenas nos encarando. Eu sabia que o momento do ataque estava para chegar. E também sabia que ele seria letal. Assim, quando o ser se agachou, pronto para dar o bote, eu respirei fundo. Era o meu fim, e não via como poderia terminar de outra maneira. Sem pestanejar, Morton lançou-me um último sorriso e saltou - tão alto como um gato e tão rápido como uma pantera.
.
Não pensando em nada, fechei os meus olhos, me preparando para a dor que viria me atingir... E ela veio. Menos penosa do que eu podia supor, e muito mais gelada.
.
Despertei enroscado no meu cobertor e estatelado de cara no chão. Minha cabeça martelava devido ao impacto da queda e os meu tórax ardia com a falta de ar. Com os dentes cerrados, inspirei profundamente e tentei me recompor. Sem paciência alguma, puxei o lençol que me enrolava com força e o joguei em cima da cama. O quarto ainda estava escuro, e a rua lá fora não emitia um barulho sequer.
.
Acordado na madrugada de novo. Quanta novidade.
.
Ainda sentindo o meu corpo, me apoiei desengonçadamente na janela e me pus a observar a cidade. Diferente das outras noite, o céu estava nublado, coberto por nuvens macabras de cores esverdeadas. Os velhos edifícios pontiagudos do centro recortavam a paisagem de um jeito nem um pouco acolhedor. E ao fundo, os imensos eucaliptos nas encostas das colinas agitavam-se furiosamente contra o rotineiro vento ártico.
.
Sem pensar em nada, fechei a janela contra a friagem que invadia o meu quarto e me virei na direção da cama. Mesmo tendo uma visão apurada no escuro, não consegui evitar o encontrão que dei na escrivaninha. Com o solavanco inesperado, todas as coisas que estavam sobre a mesa se esparramaram no piso do quarto, me obrigando a me abaixar e arrumar tudo.
.
Bufando de contrariedade, peguei a maioria dos papéis, meu player de mp3 e a luminária desligada e empurrei tudo de uma vez só para o tampo do móvel. Quando me preparei para guardar as folhas novamente dentro da pasta onde deveriam ficar, me deparei com o desenho de Serina que eu havia feito assim que as aulas começaram.
.
Ao olhar para o rosto no papel em minhas mãos, senti o meu estômago despencar. Desde a segunda feira retrasada, quando o corpo de Omar Santin foi encontrado boiando no meio da piscina olímpica do Pavilhão de Torturas, eu não tive mais notícias dos gêmeos.
.
Confesso que no começo achei que esta havia sido a melhor forma dos dois lidarem com os acontecimentos - afinal, não se falava em outra coisa nos corredores da escola (pelo visto, eu era o único em toda a cidade que não sabia dos motivos da mudança de Líon e Serina para Ventura), e vez ou outra eu reconhecia um repórter-abutre rondando a porta de entrada do Dr. Biel e sua família atrás de um furo jornalístico.
.
Mas depois de uma semana, quando a poeira - e as fofoquinhas infantis - finalmente começou a baixar, vi que a auto-reclusão obrigatória planejada pelos dois não era nem um pouco temporária.
.
- Eles estão bem, Adrian - falava a mãe dos garotos, toda vez que eu ligava para a casa dos irmãos em busca de algum sinal de vida - Só precisam de um pouco de descanso... Não precisa se preocupar.
.
''Tarde demais'', eu resmungava, assim que recolocava o aparelho no gancho. A questão na verdade era que eu, enfim, havia despertado - e a cada dia que passava, via com mais clareza o perigo real que Alexander Morton representava.
.
Contrariando todas as expectativas, ele tinha plena consciência dos poderes que estava ao seu dispor; aparecera para um ser humano comum, quebrando todos os protocolos e paradigmas; dera cabo de um homem, da forma mais cruel possível - e ao que parecia, não iria sussegar (ou deixar ser apanhado por um Arcano em Treinamento) enquanto não superasse a sua morte...
.
... enquanto não se vingasse de Líon e Serina.
.
Com a cabeça cheia de temores e preocupações, meu humor na semana seguinte decididamente foi para o buraco. Mesmo depois de descobrir um homem morto dentro do campus restrito e vigiado da Constantine, as pessoas (principalmente os alunos) não pareciam mais se perturbar tanto com o assunto.
.
Se antes o tom da conversa girava em torno de perguntas do tipo ''quem será que colocou o taxista aqui na Constantine, e por quê?'', agora o burburinho era sobre futilidades como ''que tipo de fantasia eu devo usar na festa de Formatura?'', ou ''Será que a minha gata vai deixar eu ir para a faculdade virgem?''.
.
Acredite, não inventei nenhuma das pérolas citadas.
.
O ápice da minha impaciência ocorreu na sexta-feira, pouco antes das aulas acabarem. Daniel e eu guardávamos o nosso material na mochila (o capitão da equipe de Lutas ocupava o lugar que rotineiramente era de Líon), quando Oliver Nigro se aproximou de nós, mais magro e pálido do que nunca.
.
- Ora, vejam só - resmungou o rapaz ao meu lado, assim que peecebeu a presença do filho do Dir. Nigro - a que devemos a honra de receber a visita do Rei da Academia Constantine?
.
Por um segundo, pensei que Oliver fosse responder à Daniel com a sua grosseria costumeira - mas, para minha surpresa, tudo o que ele fez foi esboçar um sorriso apático para o capitão e levantar as duas mãos, em sinal de rendição.
.
- Calma aí, amigão... Vim em missão de paz!
.
''Missão de Paz''? Esse cara só podia estar querendo tirar um sarro da minha cara...
.
Antes que eu desse por mim, uma risada sarcástica e grotesca escapou da minha boca, paralisando no lugar o restante da turma que ainda se retirava da sala de aula. Impassível, Oliver me encarou demoradamente, seu rosto congelado em uma expressão sombriamente divertida que (não sei por que motivo) me fez tremer por dentro.
.
- Como eu estava dizendo - continuou o rapaz, sem tirar aquele olhar estranho de cima de mim - vocês devem saber que o Baile de Formatura está se aproximando, não?
.
Eu me controlei para não responder. É claro que nós sabíamos disso - se a pessoa fosse surda o suficiente para não escutar o burburinho pelos corredores, bastava olhar para as dezenas de flâmulas e cartazes coloridos espalhados estrategicamente pela escola.
.
- Sim... E o que nós dois temos a ver com isso? - perguntou Daniel, tirando as palavras da minha boca.
.
Sem pestanejar, Oliver abriu o seu paletó e tirou de um bolso interno dois folders impressos em papel vermelho, do mesmo tom usado nos materias de circulação interna da Academia.
.
- É que, para alguns, existe um evento muito mais esperado do que o Baile organizado pela escola - o filho do dir. Nigro olhou para os lados e diminui o seu tom em duas oitavas - e, cai entre nós, não estou falando do última dia de aula!
.
Por um breve momento, o capitão da Equipe de Lutas e eu trocamos uma significativa mirada. Só a idéia de estar tendo uma conversa ''conspiratória'' com Oliver me causava arrepios... Ainda mais agora, quando o rapaz decididamente resolvera explorar o seu lado mais sombrio.
.
- Você ficou maluco?! - esbravejou Daniel, picotando rapidamente o fôlder em sua mão e pegando a mim e ao líder dos Privilegiados de surpresa - Se o seu pai te pega com isso, eu nem quero estar perto para saber o que vai acontecer!
.
- O que Arthur Nigro não sabe, não precisa saber - retrucou Oliver, deixando transparecer em sua voz uma ligeira ponta de amargura - Além do mais, a festa vai acontecer fora do campus da Constantine...
.
- Hei, do que vocês estão falando? - interrompi, me sentindo mais perdido do que um escoteiro no meio da cidade - E que história é essa de festa?
.
Com um movimento rápido, Daniel puxou o encarte remanescente da minha mão e o elevou na altura do meu rosto. Depois de um minuto de leitura, meu estado de espirito estava tão alterado quanto o do garoto ao meu lado.
.
- Vocês estão planejando uma ''Festa dos Veteranos''? - perguntei, não acreditando no que estava escrito no papel.
.
Em resposta à minha exaltação, tudo o que Oliver fez foi se virar novamente para mim e me lançar aquele olhar estranho.
.
Oras, como ele esperava que eu reagisse?
.
A Festa dos Veteranos nada mais era que uma espécie de preparação para o Baile de Formatura não supervisionada, onde os estudantes tinham a oportunidade de se esbaldarem até o dia raiar, entornando litros e mais litros de álcool e fazendo coisas que não fariam nem em sonhos na frente do pais.
.
Acho que nem preciso me dar ao trabalho de dizer que este evento era terminatemente abominado pela Junta de Pais e Mestres da Academia Constantine - com direito a suspensão registrada na ficha escolar em todo aquele que ousasse pensar em realizar a festa.
.
Mas é claro que para Oliver e todos os seus seguidores Privilegiados, esta regra não passava de uma lenda.
.
- Só queria deixar claro que eu informei pessoalmente todos os alunos do último ano sobre essa nossa ''reunião'' - dessa vez, toda a simpatia e humor que Oliver havia usado até então foi substituída rapidamente pela sua usual ameaça jovial - Então, se alguém der com a língua nos dentes, eu e meus amigos saberemos exatamente quem foi.
.
Aquilo foi a gota d'água.
.
Se já não bastasse ter que me preocupar todos os dias com os planos malignos de um jovem demônio perseguidor, agora tinha que também ter o cuidado de não estragar a bacanal proibida dos alunos do último ano... Quem eles pensavam que eu era?
.
- Acho que você se esqueceu da nossa última ''conversa''! - explodi, o sangue pulsando em minhas orelhas.
.
- Não me esqueci não - o filho do Dir. Nigro se aproximou de mim de forma ameaçadora, nós dois separados apenas pelo espaço ocupado por Daniel Maltha - E é justamente por isso que estou lhe avisando...
.
Antes que eu pudesse pular em seu pescoço, Oliver girou sobre os calcanhares e deixou a sala de aula, seu cabelo louro ressecado furstigando à brisa do início da tarde e seus ombros caídos, como se carregasse sobre si todo o peso do mundo.
.
Era engraçado, mas mesmo eu estando ali no meu quarto, um dia inteiro depois desse nosso encontro, aquela vontade louca de esganar meu ''arqui-inimigo de colegial'' ainda não havia passado - e dessa vez eu nem podia colocar a culpa em Alexander Morton por isso.
.
- Problemas no paraíso?
.
Depois de quase dar um mortal de costas pelo susto, me virei rapidamente na direção da porta e vi tia Angelina parada na soleira do meu quarto, vestindo um leve hobe de seda rosa sobre seu pijama de mesma cor, os cabelos prateados firmemente presos em um rabo de cavalo.
.
- Escutei um barulho - disse ela, apoiando-se na parede com seu jeito displiscente - vim ver o que era.
.
- Não... não foi nada - me apressei a dizer, guardando o desenho de Serina em minha pasta - só ''coisas da escola'', sabe como é...
.
- Sim, acho que sei - num piscar de olhos, Angel moveu-se da entrada do meu quarto e foi até a beirada da minha cama, onde o folder vermelho da Festa dos Veteranos jazia incólume - E aí, preparado para amanhã?
.
Sinceramente, não sabia o que responder.
.
Desde de segunda feira, quando por fim eu abri os olhos e descobri toda a verdade sobre a história por detrás da vinda dos irmãos Biel à Ventura, a coisa que eu mais queria fazer era me encontrar com Suzana N. Leniscky e interrogá-la de todas as formas possíveis para poder saber como Alexander Morton apareceu para ela, e o que ele poderia estar tramando. Porém, agora que faltava poucas horas para a nossa visita à Casa de Repouso, eu não sabia muito bem o que fazer por lá.
.
- Será que esta é uma boa idéia? - perguntei, uma estranha sensação de vazio se apoderando da boca do meu estômago.
.
- Esta é uma ótima idéia - respondeu Angel com simplicidade - Além do mais, você quer que algo de ruim aconteça com o seu amigo? Quer que este tal de Morton consiga aprontar alguma coisa com a Serina?
.
- É claro que não! - exclamei, minha voz mais feroz do que o necessário.
.
- Então está esperando o quê para ir dormir?!
.
Aceitando o conselho com determinação, guardei minha pasta de desenhos na gaveta da minha escrivaninha, puxei os lençóis que estavam espalados pelo chão e me esgueirei para cima da cama, as molas do colchão protestando ruidosamente sob o peso do meu corpo. Minha tia estava certa; eu estava em uma missão... Uma missão cujo o prêmio nada mais era do que a salvação de duas pessoas que haviam deixado o meu mundo de cabeça para baixo. Não havia tempo para eu ter um ataque de ''dilemas adolescentes''.
.
- Angel - sussurrei, me dando conta de um detalhe somente quando me encolhi debaixo da proteção e do calor dos meus cobertores - Por que você deu dois pesos diferentes para a situação do Líon e da Serina?
.
- Bom, acho que todos nós sabemos muito bem o por quê... - foi tudo o que ela disse quando apagou a luz do corredor e se retirou elegante e graciosa do meu quarto, um sorriso conspiratório lhe tomando a face.
.
PS: Pessoal, desculpa a demora por um novo capítulo, de verdade... O mês de abril foi muito tumultuado para mim, cheio de coisas para resolver (muitas delas positivas) e acabou que eu deixei a revisão do livro um pouco de lado - mas prometo não fazer mais isto, tudo bem?  - Henri   '')

sexta-feira, 19 de março de 2010

Capítulo 12 - Arquivo Morto

- Não me mande ficar calmo! - bradou o Diretor Nigro, no auge do seu descontrole - Um homem foi encontrado morto na piscina da minha escola! O que esperava que eu fizesse?
.
- Eu não esperava nada... - respondeu o Delegado Maltha, sua voz baixa e cautelosa - só gostaria que o senhor mantivesse um pouco de compostura na minha Delegacia, se é que posso lhe cobrar isto.
.
Qualquer que fosse a resposta que o Dir. Nigro esperava, certamente não era aquela. Com um suspiro forçado, ele encarou por um segundo o homem de olhos verdes por detrás da mesa atravancada de papéis à sua frente e começou a caminhar de um lado para o outro no pequeno escritório - parecendo mais do que nunca um velho leão sufocado em uma jaula estranha.
.
Líon, Serina e eu havíamos tido o prazer de presenciar uma verdadeira Disputa de Poder, no melhor estilo ''o meu é o maior''... E pelo o que eu conseguia entender, o pai de Daniel tinha acabado de levar a melhor. Mas, por mais interessante que aquele duelo de egos poderia parecer, eu não estava nem um pouco interessado.
.
Nós três já estávamos presos naquele escritório pequeno e escuro à mais de quatro horas, tive que prestar depoimento para o escrivão no mínimo umas duas vezes, meu cérebro latejava forte contra o meu crânio e tudo o que eu queria era ir embora dali o mais rápido possível.
.
Não fazia sentido eu ficar parado, esperando, sem fazer nada... A polícia simplesmente não tinha meios, nem era páreo para pegar o verdadeiro culpado. Somente um Arcano poderia deter o assassino das sombras; somente eu tinha que acabar com a raça daquele demônio ruivo.
.
Alheia à confusão que se passava em minha cabeça, Serina tentava se manter calma respirando com força - sua cabeça recostada pesadamente no ombro de Líon, enquanto sua mão esquerda segurava firme a minha mão esquerda. Se eu não soubesse o motivo por detrás daquele gesto, eu teria amado a sensação de sua pele contra a minha, de nossos braços se tocando levemente...
.
Mas eu sabia. Muito mais do que os gêmeos poderiam suspeitar. E aquilo me matava. Afinal, como algo tão ruim pode acontecer com pessoas tão boas?
.
Do outro lado do sofá apertado que dividíamos, o novato mantinha o seu olhar perdido, as mãos pálidas acolhendo com energia um livro atarracado e grosso de capa dura. Pode parecer maluquice, mas foi só neste momento específico que percebi que Líon sempre vivia colado com algum livro, o carregando para cima e para baixo. E aquela deveria ser a terceira ou quarta vez que eu o via com o mesmo - um magnífico exemplar negro, sua cobertura ostentando uma bela e imponente borboleta, posicionada logo acima das letras douradas do título O Intercessor.
.
- Ótima capa - sussurrei, me agarrando à idéia de uma conversa sadia e fútil com todas as minhas fibras - Pelo título parece ser bom...
.
Líon ergueu seu olhar abatido para mim e se forçou a sorrir, seu rosto mais velho do que ele realmente era.
.
- É fantástico - disse ele de volta, sua voz mais fraca do que a minha - Com certeza está entre os meus dez preferidos.
.
- Legal - comentei, espiando de relance o caminhar imperativo do Diretor Nigro - Então, ele fala sobre o quê?
.
Com um riso apagado e baixo, Serina tirou a cabeça lentamente do ombro do irmão e me encarou, sua mão pulsando marotamente contra os meus dedos.
.
- Você vai ser arrepender de ter feito essa pergunta - cochichou a garota, indicando seu gêmeo com o queixo - Li é a maior ''traça-de-biblioteca'' que eu já conheci na vida, pode confiar em mim.
.
Antes que ela percebesse, Lion se sacudiu e empurrou a irmã para o lado, tentando se afastar dela. Em um dia normal, eu teria certeza que aquela havia sido uma implicância comum entre os dois, mas hoje não. Era visível o nosso esforço para parecermos naturais, e eu não os culpava por isso - eu mesmo me esforçava para parecer o mais natural possível.
.
- Como eu estava dizendo - continuou o novato, fazendo questão de excluir a garota da conversa - O livro é um romance, mas de fantasia. Ele conta a história de um Agente da Morte que se apaixona pela jovem de quem ele teria que recolher a Alma... Mas é claro que nada é tão simples quanto parece, e é aí que a história fica realmente boa.
.
- Legal - repeti, tentando controlar a expressão que havia surgido em meu rosto assim que ouvi Líon dizer ''Agente da Morte''.
.
Assim que me recostei novamente no meu canto do sofá, a porta do escritório foi aberta e um jovem policial se esgueirou para dentro, desviando-se da marcha metódica do Dir. Nigro, até se aproximar da mesa onde Delegado Maltha estava.
.
- Senhor, os responsáveis das testemunhas já chegaram.
.
- Muito bem - disse o delegado, retirando os olhos da papelada que examinava e se virando para o sofá onde os irmãos Biel e eu estávamos encolhidos - Agora já podemos tomar o depoimento dos gêmeos... garoto Regis, o senhor está liberado.
.
Com um breve aceno de cabeça, me despedi de Líon e, depois de apertar um pouco mais a mão de Serina, acompanhei o policial para fora do escritório.
.
Logo depois de cruzar a porta, um casal se aproximou de mim e tive que parar. Eles não eram pessoas conhecidas, mas eu sabia muito bem de quem eles eram pais. O homem era alto e forte, de cabelos cor-de-bronze cuidadosamente penteados e o rosto quadrado, porém bondoso. Já a mulher era um pouco mais baixa que ele, seu rosto redondo e delicado igual à de um anjo, a pele resplandecendo no mais perfeito tom de ébano.
.
- Você é o Adrian Regis, não?
.
Sem dar tempo para qualquer resposta, a mãe dos irmãos Biel me puxou para mais perto e me enlaçou em um longo e profundo abraço. Eu poderia ficar um pouco embaraçado com a situação, mas só naquele gesto eu conseguia sentir todo o amor e adoração que a mulher nutria pelos filhos fluir para mim. Um pouco atrás da esposa, o pai de Líon e Serina me examinava com inegável respeito, o agradecimento mudo presente em seu olhar.
.
Mesmo depois de me separar do casal e observar os dois entrarem juntos no escritório do Delegado Maltha, a minha voz ainda não havia voltado. Agora que eu conhecia pessoalmente os pais dos gêmeos, eu mais do que nunca me sentia a maior fraude do mundo. Um Arcano completamente incompetente, que não conseguia nem lidar com um demônio Comum.
.
Como eu iria me sentir se aquela família fosse destruída, por uma falha minha?
.
O jovem policial que me aconpanhava indicou o caminho para a saída e eu o segui. Do lado de fora, Cirus e Angel me esperavam, meu pai ainda vestindo o uniforme da Brigada de Paramédicos. No início eu achei ótimo ter os dois ali, assim eu falaria logo tudo o que tinha para contar, mas depois de ver as expressões sérias tomando o rosto de cada um, não sabia mais se aquela era uma boa idéia.
.
- Adrian, precisamos conversar...
.
Eu não disse! Só por essa frase do Cirus eu sabia que vinha mais bomba na minha direção. E foi com esse peso no estômago que eu segui meu pai e minha tia até o estacionamento deserto e entrei relutânte no nosso Mustang vermelho.
.
- Legal, podem acabar comigo de uma vez! - comecei, meu sangue correndo à mil por hora nas minhas veias - Mas eu só gostaria de lembrar que esta é a minha primeira Missão, logo eu...
.
Não me dando chances de continuar a minha defesa, Cirus virou-se para mim do banco do motorista e jogou no meu colo uma pesada pilha de jornais e recortes velhos. Por um segundo, a única coisa que eu consegui fazer foi ficar olhando para o bloco de papel àspero em minhas mãos, me perguntando aonde o meu pai queria chegar. Era certo que eu esperava o maior sermão que alguém já temera receber na vida, mas aquilo com certeza não se enquadrava em categoria alguma de punição.
.
- O que significa tudo isto?!
.
- Apenas leia as notícias, está bem?
.
Era isso, só ler as notícias... Isto estava ficando pior do que imaginava.
.
- Será que você pode fazer isto um pouquinho mais rápido? - disse Angel, remexendo-se com impaciência no seu banco.
.
- Tá bom, tá bom. Não precisa ficar irritadinha! - respondi com acidez, ao mesmo tempo que pegava o primeiro jornal da pilha.
.
Antes mesmo de eu desdobrar a primeira página, o choque me atropelou feito um trem desgovernado. Encabeçando uma notícia de destaque, a foto de um rapaz ruivo e bonito, com profundos olhos negros, me encarava sorridente e meio debochado - como se soubesse o salto vertiginoso que o meu coração dera ao vê-lo ali.
.
- Mas... mas... é ele! É o demônio que está tentando matar o Líon!
.
- Sim, foi o que Angel e eu supomos - comentou Cirus, seus olhos cinzentos indo do papel nas minhas mãos até o meu rosto - Agora vá até a página seis e leia a matéria completa.
.
Obedecendo à meu pai com um profundo temor, corri as folhas do jornal rapidamente e encontrei a notícia relacionada à manchete, meu dedos tremendo tanto que eu mal conseguia distinguir os parágrafos de forma correta:
.
POLÍCIA DE DUMONT ENCERRA INQUÉRITO SOBRE ACIDENTE
.
Depois de três semanas de intensa investigação, o 12ª Departamento de Polícia dos Três Estados finalmente concluiu o inquérito sobre o trágico acidente ocorrido na rodovia que liga as cidades de Ventura e Dumont, envolvendo dois adolescentes e um jovem universitário.
.
''Não foi um caso exatamente complicado'', declarou o Detetive Élder Castel - responsável por conduzir o caso, ''mas haviam uma dúzia de fatores que precisavam ser concluídos, antes que déssemos fim aos trabalhos e reuníssemos os arquivos''.
.
Segundo o relatório oficial, o incidente ocorreu na noite de Sexta Feira (21), pouco antes da meia-noite. De acordo com a perícia, o taxista Omar Santin (32 anos) realizava sua última viagem acompanhando os irmão Líon e Serina Biel (17 anos), quando os três foram surpreendidos pelo estudante de medicina Alexander Morton (24 anos), que dirigia o seu conversível importado na contra-mão e acima do limite de velocidade.
.
''O exames laboratoriais confirmaram que Alexander ingeriu uma grande quantidade de álcool e drogas ilícitas antes de pegar o volante, o que contribuiu para o acidente e, obviamente, o rápido falecimento do mesmo'', afirma o Detetive Castel, salientando os fatores que causaram o óbito do universitário antes mesmo da chegada da primeira ambulância no local do acidente.
.
Apesar de terem sofrido apenas ferimentos leves, fontes ligadas aos dois passageiros e ao motorista do táxi informaram que os sobreviventes estão constantimente recebendo consultoria psicológica de uma junta médica do Hospital Geral de Dumont. Procurados pela nossa equipe de reportagem, nenhum dos envolvidos no incidente quiseram prestar uma declaração sobre o encerramento do inquérito.
.
Mesmo tendo terminado de ler a notícia, por um bom tempo eu encarei apenas o jornal na minha frente.
.
Naqueles poucos segundos de silêncio, o meu sonho se materializou diante de mim e eu pude visualizar perfeitamente o taxista Omar Santin ao meu lado, concentrado na estrada com todas as suas fibras. No banco de trás, as risadas altas e alegres de Líon e Serina eram liberadas aos borbotões, os dois nem imaginando o que iria acontecer a seguir...
.
- Adrian, você está bem?
.
Angel me observava com cautela, seus grandes olhos azuis me escaneando da cabeça aos pés.
.
Eu gostaria de dizer à ela que estava bem - que aquilo me dera forças para continuar a minha missão - mas eu saberia que era uma mentira. A verdade era que, a cada dia que passava, as coisas pioravam mais. Descobrir que uma parte do meu sonho fora real, que esse tempo todo eu ''via'' os irmãos Biel no meu subconsciente, só me deixou mais arrasado ainda.
.
- Alexander Morton... então, esse é o nome do demônio assassino.
.
Nem Cirus nem Angel falaram nada sobre o assunto. Só menearam a cabeça em concordância, todo o peso do mundo pairando sobre os dois. Eles nem precisavam se dar ao trabalho de esboçar qualquer reação ao meu comentário, eu estava cem por cento certo quanto a isto.
.
Com um lampejo, me lembrei do meu primeiro dia de aula e de meu pai lendo o jornal na nossa cozinha, falando sobre a conclusão das investigações de um acidente em Dumont envolvendo jovens. Depois, a imagem do Dir. Nigro, engolindo todo o seu autoritarismo e tratando Líon da forma mais afável que podia, me encheu a mente - só para ser substituída depois pelo próprio novato, sozinho na enfermaria e me confidenciando os problemas pelo qual a sua família vinha passando nos últimos tempos.
.
- Como pude ser tão imbecil?... Como pude ser tão obtuso com relação aos sinais que me rodeavam?
.
Mais uma vez, nenhuma resposta oral.
.
Agora eu percebia que o demônio, Alexander Morton, não estava perseguindo só o Líon - mas também Serina e o taxista, Omar. Alexander Morton queria vingar a sua morte... Se vingar das três pessoas que haviam sobrevivido ao seu acidente fatal, que ele mesmo provocara.
.
Fora por isso que a família Biel resolveu se mudar para Ventura. Eles estavam tentando reconstruir suas vidas novamente, bem longe das lembranças daquele terrível dia. Só que eles não contavam que a lembrança principal não estava nem um pouco disposta a ser esquecida.
.
- Angel - comecei, me lembrando de algo que minha tia dissera assim que chegou na Casa-de-Bombeiros - eram eles, não eram? A família que você estava tentando ajudar em Dumont, mas que foram embora antes de você poder fazer qualquer coisa.
.
- Sim - confirmou ela, simplesmente - mas eu não fazia idéia que eram eles quem você estava protegendo. Só fiz a ligação dos fatos ontem de manhã, quando encontrei o jornal na garagem. Infelizmente, ao que parece, foi tarde demais.
.
- Não seja ridícula - a cortei, mais ríspido do que o necessário.
.
- Como não?... Eu não sabia da existência do taxista, nem imaginava que ouvesse um acidente na história! Para mim, Alexander só estava perseguindo a família Biel por uma obsessão doentia... O pai dos garotos era tutor dele na Faculdade.
.
- O quê?! - gorlejei, a confusão mais uma vez fervilhando em minha mente.
.
- Você pode não saber, Adrian, mas Marcus Biel é um renomado médico-cirurgião... - enquanto falava, Cirus se inclinou sobre mim e pegou a instável pilha de jornais em meu colo.
.
- Há um mês ele pediu transferência para o Hospital daqui da cidade, e só agora me dei conta do por quê - depois de uma rápida conferida, meu pai estendeu sua mão e colocou um pequeno recorte sobre a notícia que eu acabara de ler - Essa matéria aqui fala justamente da grande ironia causada pelo acidente: Um dos estagiários mais brilhantes que o Dr. Biel monitorava no Hospital Geral de Dumont quase causou a morte prematura de seus dois únicos filhos.
.
Eu olhei para a fotografia séria do pai dos gêmeos e me lembrei do nosso pequeno encontro na Delegacia, à poucos minutos atrás. Será que ele suspeitava que seu ex-protegido ainda estava tentando destruir a vida de sua família?
.
- Eu não sei o que pensar - disse por fim, jogando tudo que eu segurava no chão do Mustang - Parece que estou mergulhando em queda livre para dentro de um grande filme de terror...
.
- Então acho melhor você se preparar por mais - recomeçou Angel, sua voz cantada e cristalina repinicando misteriosamente - Ontem à tarde, enquanto procurava mais informações sobre o Morton, acabei descobrindo algo que pode nos ajudar...
.
Abrindo o porta-luvas do carro, a garota puxou duas fotocópias amassadas e as passou rapidamente para Cirus e eu. Depois de uma rápida conferida na folha, percebi que o papel era a reprodução de um documento hospitalar, mais precisamente uma ficha de internação, no nome de ''Suzana N. Leniscky''.
.
- Quem é Suzana N. Leniscky?
.
- Ah, eu sabia que vocês iriam perguntar - Angel recostou-se em sua poltrona, e um tímido sorriso de triunfo brincou em seus lábios - Suzana N. Leniscky nada mais é do que a ''namorada-viúva'' de Alexander Morton.
.
Cirus e eu nos encaramos por um breve momento.
.
- Hum, claro - pigarreou meu pai, analisando mais um vez a ficha com afinco - Mas aqui não diz por que ela foi internada recentemente em uma ''Casa de Repouso''...
.
Desta vez, eu consegui ligar os pontos mais rápido do que Cirus. Afinal, o que um responsável ''normal'' faria se sua filha chegasse em casa e falasse que estava tendo encontros esporádicos com o namorado morto?
.
- Angel, acho que nós precisamos urgentemente conversar com Suzana N. Leniscky.