quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Capítulo 15 - Convite

- Quem é você, e o que fez com o verdadeiro Adrian Regis?
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Líon e Serina me encaravam como se eu tivesse perdido a cabeça por completo. Tudo bem, talvez eu tenha a perdido - mas foi só um pouquinho. Afinal, reconheço que ninguém em sã consciência pularia de um carro em movimento e desceria três quadras abaixo de sua casa em meio à um verdadeiro dilúvio só para convidar o amigo (e sua irmã desconcertantemente linda) para uma festa clandestina organizada pelo seu arqui-inimigo de Escola.
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Mas eu tinha que fazer esta ''loucura''. Eu não podia deixar que os gêmeos continuassem encarcerados dentro de um quarto, com medo de suas próprias sombras, enquanto um candidato à vilão de fotonovela executava a sua vingança mesquinha, empregando todas as suas forças em ferrar com a cabeça - e a vida - dos dois.
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- Cara, é a Festa dos Veteranos - retrucou Líon, sua voz no mesmo tom à de um professor que tenta explicar algo bem óbvio para um aluno especialmente estúpido - Além de ilegal, é o Oliver quem está realizando... Tá na cara que esta história não vai acabar bem!
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- Eu sei, eu sei - respondi com impaciência, enquanto observava culpado o pequeno círculo de água que escorria de minhas roupas encharcadas e ensopava o carpete azul-brilhante sob os meus pés - mas não iremos para a festa por causa dele... e sim por causa de vocês!
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- O que você quer dizer com isto?
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Do outro lado da sala, Serina observava nossa discussão com ligeiro interesse. Por mais abatida que ela e o irmão poderiam estar, nada no mundo parecia ter o poder de desfigurar as suas feições angelicais ou de apagar o brilho dourado de sua pele castanha.
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- O que eu quero dizer - comecei a falar, fazendo força para colocar minha linha de pensamento no caminho certo, enquanto tomava cuidado para não dar com a língua nos dentes - é que estou preocupado. Já fazem duas semanas desde que... aconteceu aquilo tudo na Constantine... e vocês continuam na mesma! Não saem de casa. Perdem as aulas. Nem mesmo atendem o telefone!
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Por um longo minuto, nem Líon ou Serina trocaram palavra alguma. Os dois mantinham as cabeças baixas, a garota parecendo apreciar o mesmo ponto fixo do chão acarpetado enquanto o irmão acariciava distraidamente a pelagem negra e luzidia de seu gato de estimação.
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Sortudo, por falar nele, ainda não havia superado a sua ''pequena'' repulsa por mim. Ao que tudo indicava, o fato de eu estar parado - e molhado - no meio da sua sala de estar era uma afronta mortal, e seus olhos amarelos-letais não me deixavam esquecer que eu só continuava mantendo a minha integridade física devido ao simples fato de ele estar involuntariamente aprisionado no colo do dono.
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- Sabem - comentou uma voz feminina e bem adocicada às minhas costas - acho que o amigo de vocês tem razão.
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Tentando disfarçar o susto, me virei para trás e dei de cara com a mãe dos gêmeos. A mulher sorria para mim com ternura, e uma de suas mãos estendia um par de toalhas alvas e felpudas.
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- Me desculpe, senhora - murmurei constrangido, aceitando de bom grado as toalhas e tentando minimizar o mais rápido que podia o estrago que eu produzia.
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- Por favor, me chame de Leona - com uma graça indescritível, a esposa do Dr. Biel atravessou a pequena sala de visitas e sentou-se delicadamente no braço da poltrona onde Serina estava - E não precisa se desculpar... Sou eu que tenho que lhe agradecer por vir aqui e tentar colocar um pouco de juízo nesses dois cabeças duras.
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- Um pouco de juízo?! Ele está tentando nos levar para uma festa clandestina!
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Em resposta ao comentário indignado do filho, tudo o que Leona fez foi cruzar os braços de forma displiscente e lançar um olhar bastante divertido na direção de Líon.
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- Pode parecer bem atípico o que estou para dizer - continuou a mulher, a expressão despreocupada ainda estampando o seu rosto - mas eu acho que vocês fazerem algo ''indevido'' é mil vezes melhor do que simplesmente não fazerem nada!
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Olhando aquele momento de forma superficial, poderia se dizer que a mãe dos gêmeos estava ''curtindo com a cara'' dos filhos sem se abalar com nada. Mas a verdade era que aquela chacota ocultava algo que não poderia ser mais distante do que aquilo. Algo que, querendo ou não, tanto Líon quanto Serina reconheciam muito bem - e que teriam que dar o braço a torcer.
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- Então - começou a garota, olhando de mim para a mãe com uma expressão que misturava desafio e resignação - tudo o que vocês estão pedindo é que concordemos em ir nesta tal ''Festa dos Veteranos'', sob a condição de agirmos feito adolescentes desmiolados em uma balada de um filme produzido para a televisão?
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- Na verdade - respondeu Leona, um sorrisso zombeteiro e satisfeito brincando em seus lábios, reconhecendo a vitória antes mesmo dela ser declarada - eu também acrescentaria à esta condição algo como ''voltar para escola e recuperar todas as matérias que perderam'', mas suponho que os dois já entenderam o recado...
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Depois deste sútil ultimato disfarçado de conversa casual, acho que nem preciso dizer que - na segunda feira seguinte - lá estava eu na porta de entrada dos irmãos Biel, esperando pacientemente Líon e Serina se aprontarem, para irmos juntos para mais um dia de ''estudos'' na Academia Constantine.
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- Eu ainda não acredito que você convenceu a mamãe com aquela baboseira... - retrucou o garoto ao meu lado, pela décima quinta vez só naquela manhã - Afinal, que tipo de responsável ''normal'' prefere ver um filho aprontando no meio da noite do que ficando em casa, sozinho em seu quarto?
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- A nossa - respondeu Serina, colocando-se elegantemente entre nós dois e dando o braço para o gêmeo e para mim - E, pensando melhor, acho que ela tem razão. Eu já estava começando a sentir falta do pessoal.
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Ao dizer isto, a garota se voltou na minha direção e me lançou uma ligeira piscadela.
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- Legal, acho que agora eu posso vomitar - resmungou Líon, deixando claro que tinha visto o que havia acabado de acontecer. Mas, para a minha felicidade, ele não teve muito tempo para continuar a sua picuinha. Pois, assim que chegamos ao pátio externo da escola, fomos literalmente engolidos por uma pequena multidão que nos aguardava no Portão de Entrada da Constantine - basicamente formada pelos membros da Equipe de Lutas, muito bem acompanhados por Alice e suas amigas.
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- Ai Meu Deus, Ai Meu Deus! - repetiu a garota entre os gritos estridentes das outras meninas, todas pulando e balançando as mãos ao redor de Serina como mariposas rodeando uma lâmpada fluorescente no verão. - Serina voltou, Serina Voltou!
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- Ah... É bom ver vocês também! - Serina sorriu timidamente, claramente constrangida pela demonstração de carinho exarcebada.
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- Como vocês sabiam que nós viríamos para a escola hoje? - perguntou Líon, tentando se esquivar inutilmente dos tapinhas e dos abraços-de-urso que os lutadores tentavam dar nele.
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- Sabe, eu tenho os meus informantes - disse Daniel, despenteando o cabelo lanzudo do novato e fingindo socar o queixo dele.
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Se ele tinha ou não informantes, eu realmente não sabia. Mas de uma coisa eu estava certo: aquela surpresa havia feito muito bem para os irmãos Biel. É claro que Líon fingia estar bastante contrariado com toda aquela atenção, mas eu podia ver que, no fundo, ele se sentia maravilhado com a recepção - tanto com a do grupo barulheiro ao nosso redor quanto a dos estuadantes que passavam por nós e cumprimentavam rapidamente à ele e Serina.
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Só que não foram só os alunos da Constantine que demonstraram o seu contentamento com o retorno dos gêmeos para a escola. Até os professores da Academia pareciam felizes com a presença dos dois. Um exemplo disto foi a Treinadora Kara, que - contrariando todas as expectativas - anunciou com alegria para a turma de Formandos que teríamos um dia de atividades livres no Pavilhão de Tortura.
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- É sério, por essa eu não esperava - comentou Serina, assim que nos encontramos no intervalo, alguns dias depois - Pelo o que falam, a Treinadora nunca abandonou um plano de aula em todos estes anos... O que foi que deu nela?
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- Eu não faço a mínima idéia - murmurou Líon, entre uma e outra mordida que dava em seus snacks de batata hiper-condimentados - Mas, se eu pudesse apostar em alguma coisa, eu diria que isto tem uma ''certa'' relação com a tal Festa dos Veteranos.
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O que não deixava de ser verdade.
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Pois, a cada segundo que se passava, mas as conversas pelos corredores eram substítuidas pelos murmurios nervosos daqueles que planejavam ir às escondidas para o evento. Corria um boato de que, para dar um ''cala a boca'' nos professores mais novos, Oliver Nigro os havia convidado para a festa - sob a condição de não contarem uma única palavra para o pai dele.
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- Por mais que ache um absurdo, esta história meio que faz sentido - comentou Daniel, juntando-se à nós três e se sentando às sombras do passeio de pedra que cruzava o campus da Constantine de uma ponta à outra - Na segunda feira mesmo eu vi a Kara e o professor Novaz cochichando perto da Biblioteca... E quando o Dir. Nigro chegou, os dois mudaram de assunto rapidinho.
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- Ah, que maravilha - resmungou Líon, fechando o seu pote de batatas no mesmo instante e cruzando os braços com impaciência - Se não me bastasse ter que aturar o idiota do Oliver nesta ''festa'', ainda por cima ganho a professora de Educação Física metida à carrasco como brinde!
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Daniel, que até então não fazia a minima idéia do convite que eu havia feito aos gêmeos no sábado, pareceu se engasgar com a própria saliva quando finalmente percebeu sobre o quê o novato estava falando.
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- Como é que é?! Vocês três estão planejando ir para a ''Festa dos Veteranos''?
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- É...
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Antes mesmo que eu completasse a frase, o Capitão da Equipe de Lutas se levantou e apoiou-se na coluna de tijolos mais próxima, só para - meio segundo depois - se dobrar ao meio de tanto rir.
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- Eu não acredito! - exclamou o rapaz, tentando respirar entre uma gargalhada e outra - Adrian ''Esquisito'' Regis indo à uma balada organizada por Oliver Nigro, seu Arqui-Inimigo desde o maternal?! Céus... Essa eu tenho que ver!
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- Sabe, isto realmente não é grande coisa - murmurei à contra-gosto, tão constrangido pela reação de Daniel que precisei de alguns instantes para entender o que ele estava dizendo.
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- Espere aí... Quer dizer que você também vai para a ''Festa dos Veteranos''?!
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- Mas é claro - esbravejou o garoto, se aproximando de mim em um pulo e me dando um forte tapa nas costas - E depois desta sua novidade, tenho certeza que não serei o único da turma à mudar os planos para o sábado que vem, pode apostar!
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- Com certeza - resmungou Líon, que contrariava todas as minhas expectativas e parecia ficar mais amargo à cada minuto que se passava - E, aproveitando esta brilhante oportunidade, por que não chamamos mais gente... Como, sei lá, os pirralhos da 9ª Série?! Afinal, tudo o que precisamos é que esta festa seja um sucesso, não é mesmo?
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Dizendo isto, o garoto reuniu todas as suas coisas em tempo recorde e rumou à passos largos na direção do Prédio Principal da Constantine, sem olhar uma única vez para trás - nem para dizer ''até daqui á pouco'' para sua gêmea.
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- Mas qual foi o bicho que mordeu ele?
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Eu não sabia o que responder para o Daniel.
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Para falar a verdade, nunca vira o novato se comportar de forma tão rude e grosseira em todo este tempo. Ao olhar para Serina, que encarava o espaço vazio deixado pelo irmão com uma expressão atordoada no rosto, só confirmei o que já suspeitava: aquile tipo de atitude não era normal.
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Por um breve segundo, quis me levantar das sombras do nosso abrigo no passeio da Academia e correr até onde Líon estava para lhe garantir que, se ele se sentisse mais confortável, nós não iríamos na Festa. Tudo o que faríamos no sábado seria alugar alguns dvd's na locadora e passar à noite na Casa-de-Bombeiros fazendo uma sessão pipoca de filmes B.
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Só que eu me detive. E não o segui.
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Até por que, eu sabia que eu estava tentando fazer o melhor para ele e para a irmã - mesmo que, agora, ele não soubesse. Deixá-lo sozinho, sem ter contato com outras pessoas, era exatamente o que Alexander Morton esperava que eu fizesse.
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Mas eu não ia cair naquele jogo.
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Por isso eu passei por cima do meu orgulho e aceitei o convite forçado feito pelo Oliver. Se fosse preciso me humilhar na frente de todos os Privilegiados da escola, só para manter os dois à salvos das garras daquele aprendiz idiota de demônio, com certeza eu o faria - sem pensar duas vezes.
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Pois esta era a minha obrigação... Não só como um Arcano.
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Mas, principalmente, como um Amigo.