sexta-feira, 19 de março de 2010

Capítulo 12 - Arquivo Morto

- Não me mande ficar calmo! - bradou o Diretor Nigro, no auge do seu descontrole - Um homem foi encontrado morto na piscina da minha escola! O que esperava que eu fizesse?
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- Eu não esperava nada... - respondeu o Delegado Maltha, sua voz baixa e cautelosa - só gostaria que o senhor mantivesse um pouco de compostura na minha Delegacia, se é que posso lhe cobrar isto.
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Qualquer que fosse a resposta que o Dir. Nigro esperava, certamente não era aquela. Com um suspiro forçado, ele encarou por um segundo o homem de olhos verdes por detrás da mesa atravancada de papéis à sua frente e começou a caminhar de um lado para o outro no pequeno escritório - parecendo mais do que nunca um velho leão sufocado em uma jaula estranha.
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Líon, Serina e eu havíamos tido o prazer de presenciar uma verdadeira Disputa de Poder, no melhor estilo ''o meu é o maior''... E pelo o que eu conseguia entender, o pai de Daniel tinha acabado de levar a melhor. Mas, por mais interessante que aquele duelo de egos poderia parecer, eu não estava nem um pouco interessado.
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Nós três já estávamos presos naquele escritório pequeno e escuro à mais de quatro horas, tive que prestar depoimento para o escrivão no mínimo umas duas vezes, meu cérebro latejava forte contra o meu crânio e tudo o que eu queria era ir embora dali o mais rápido possível.
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Não fazia sentido eu ficar parado, esperando, sem fazer nada... A polícia simplesmente não tinha meios, nem era páreo para pegar o verdadeiro culpado. Somente um Arcano poderia deter o assassino das sombras; somente eu tinha que acabar com a raça daquele demônio ruivo.
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Alheia à confusão que se passava em minha cabeça, Serina tentava se manter calma respirando com força - sua cabeça recostada pesadamente no ombro de Líon, enquanto sua mão esquerda segurava firme a minha mão esquerda. Se eu não soubesse o motivo por detrás daquele gesto, eu teria amado a sensação de sua pele contra a minha, de nossos braços se tocando levemente...
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Mas eu sabia. Muito mais do que os gêmeos poderiam suspeitar. E aquilo me matava. Afinal, como algo tão ruim pode acontecer com pessoas tão boas?
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Do outro lado do sofá apertado que dividíamos, o novato mantinha o seu olhar perdido, as mãos pálidas acolhendo com energia um livro atarracado e grosso de capa dura. Pode parecer maluquice, mas foi só neste momento específico que percebi que Líon sempre vivia colado com algum livro, o carregando para cima e para baixo. E aquela deveria ser a terceira ou quarta vez que eu o via com o mesmo - um magnífico exemplar negro, sua cobertura ostentando uma bela e imponente borboleta, posicionada logo acima das letras douradas do título O Intercessor.
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- Ótima capa - sussurrei, me agarrando à idéia de uma conversa sadia e fútil com todas as minhas fibras - Pelo título parece ser bom...
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Líon ergueu seu olhar abatido para mim e se forçou a sorrir, seu rosto mais velho do que ele realmente era.
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- É fantástico - disse ele de volta, sua voz mais fraca do que a minha - Com certeza está entre os meus dez preferidos.
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- Legal - comentei, espiando de relance o caminhar imperativo do Diretor Nigro - Então, ele fala sobre o quê?
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Com um riso apagado e baixo, Serina tirou a cabeça lentamente do ombro do irmão e me encarou, sua mão pulsando marotamente contra os meus dedos.
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- Você vai ser arrepender de ter feito essa pergunta - cochichou a garota, indicando seu gêmeo com o queixo - Li é a maior ''traça-de-biblioteca'' que eu já conheci na vida, pode confiar em mim.
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Antes que ela percebesse, Lion se sacudiu e empurrou a irmã para o lado, tentando se afastar dela. Em um dia normal, eu teria certeza que aquela havia sido uma implicância comum entre os dois, mas hoje não. Era visível o nosso esforço para parecermos naturais, e eu não os culpava por isso - eu mesmo me esforçava para parecer o mais natural possível.
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- Como eu estava dizendo - continuou o novato, fazendo questão de excluir a garota da conversa - O livro é um romance, mas de fantasia. Ele conta a história de um Agente da Morte que se apaixona pela jovem de quem ele teria que recolher a Alma... Mas é claro que nada é tão simples quanto parece, e é aí que a história fica realmente boa.
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- Legal - repeti, tentando controlar a expressão que havia surgido em meu rosto assim que ouvi Líon dizer ''Agente da Morte''.
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Assim que me recostei novamente no meu canto do sofá, a porta do escritório foi aberta e um jovem policial se esgueirou para dentro, desviando-se da marcha metódica do Dir. Nigro, até se aproximar da mesa onde Delegado Maltha estava.
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- Senhor, os responsáveis das testemunhas já chegaram.
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- Muito bem - disse o delegado, retirando os olhos da papelada que examinava e se virando para o sofá onde os irmãos Biel e eu estávamos encolhidos - Agora já podemos tomar o depoimento dos gêmeos... garoto Regis, o senhor está liberado.
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Com um breve aceno de cabeça, me despedi de Líon e, depois de apertar um pouco mais a mão de Serina, acompanhei o policial para fora do escritório.
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Logo depois de cruzar a porta, um casal se aproximou de mim e tive que parar. Eles não eram pessoas conhecidas, mas eu sabia muito bem de quem eles eram pais. O homem era alto e forte, de cabelos cor-de-bronze cuidadosamente penteados e o rosto quadrado, porém bondoso. Já a mulher era um pouco mais baixa que ele, seu rosto redondo e delicado igual à de um anjo, a pele resplandecendo no mais perfeito tom de ébano.
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- Você é o Adrian Regis, não?
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Sem dar tempo para qualquer resposta, a mãe dos irmãos Biel me puxou para mais perto e me enlaçou em um longo e profundo abraço. Eu poderia ficar um pouco embaraçado com a situação, mas só naquele gesto eu conseguia sentir todo o amor e adoração que a mulher nutria pelos filhos fluir para mim. Um pouco atrás da esposa, o pai de Líon e Serina me examinava com inegável respeito, o agradecimento mudo presente em seu olhar.
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Mesmo depois de me separar do casal e observar os dois entrarem juntos no escritório do Delegado Maltha, a minha voz ainda não havia voltado. Agora que eu conhecia pessoalmente os pais dos gêmeos, eu mais do que nunca me sentia a maior fraude do mundo. Um Arcano completamente incompetente, que não conseguia nem lidar com um demônio Comum.
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Como eu iria me sentir se aquela família fosse destruída, por uma falha minha?
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O jovem policial que me aconpanhava indicou o caminho para a saída e eu o segui. Do lado de fora, Cirus e Angel me esperavam, meu pai ainda vestindo o uniforme da Brigada de Paramédicos. No início eu achei ótimo ter os dois ali, assim eu falaria logo tudo o que tinha para contar, mas depois de ver as expressões sérias tomando o rosto de cada um, não sabia mais se aquela era uma boa idéia.
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- Adrian, precisamos conversar...
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Eu não disse! Só por essa frase do Cirus eu sabia que vinha mais bomba na minha direção. E foi com esse peso no estômago que eu segui meu pai e minha tia até o estacionamento deserto e entrei relutânte no nosso Mustang vermelho.
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- Legal, podem acabar comigo de uma vez! - comecei, meu sangue correndo à mil por hora nas minhas veias - Mas eu só gostaria de lembrar que esta é a minha primeira Missão, logo eu...
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Não me dando chances de continuar a minha defesa, Cirus virou-se para mim do banco do motorista e jogou no meu colo uma pesada pilha de jornais e recortes velhos. Por um segundo, a única coisa que eu consegui fazer foi ficar olhando para o bloco de papel àspero em minhas mãos, me perguntando aonde o meu pai queria chegar. Era certo que eu esperava o maior sermão que alguém já temera receber na vida, mas aquilo com certeza não se enquadrava em categoria alguma de punição.
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- O que significa tudo isto?!
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- Apenas leia as notícias, está bem?
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Era isso, só ler as notícias... Isto estava ficando pior do que imaginava.
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- Será que você pode fazer isto um pouquinho mais rápido? - disse Angel, remexendo-se com impaciência no seu banco.
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- Tá bom, tá bom. Não precisa ficar irritadinha! - respondi com acidez, ao mesmo tempo que pegava o primeiro jornal da pilha.
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Antes mesmo de eu desdobrar a primeira página, o choque me atropelou feito um trem desgovernado. Encabeçando uma notícia de destaque, a foto de um rapaz ruivo e bonito, com profundos olhos negros, me encarava sorridente e meio debochado - como se soubesse o salto vertiginoso que o meu coração dera ao vê-lo ali.
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- Mas... mas... é ele! É o demônio que está tentando matar o Líon!
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- Sim, foi o que Angel e eu supomos - comentou Cirus, seus olhos cinzentos indo do papel nas minhas mãos até o meu rosto - Agora vá até a página seis e leia a matéria completa.
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Obedecendo à meu pai com um profundo temor, corri as folhas do jornal rapidamente e encontrei a notícia relacionada à manchete, meu dedos tremendo tanto que eu mal conseguia distinguir os parágrafos de forma correta:
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POLÍCIA DE DUMONT ENCERRA INQUÉRITO SOBRE ACIDENTE
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Depois de três semanas de intensa investigação, o 12ª Departamento de Polícia dos Três Estados finalmente concluiu o inquérito sobre o trágico acidente ocorrido na rodovia que liga as cidades de Ventura e Dumont, envolvendo dois adolescentes e um jovem universitário.
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''Não foi um caso exatamente complicado'', declarou o Detetive Élder Castel - responsável por conduzir o caso, ''mas haviam uma dúzia de fatores que precisavam ser concluídos, antes que déssemos fim aos trabalhos e reuníssemos os arquivos''.
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Segundo o relatório oficial, o incidente ocorreu na noite de Sexta Feira (21), pouco antes da meia-noite. De acordo com a perícia, o taxista Omar Santin (32 anos) realizava sua última viagem acompanhando os irmão Líon e Serina Biel (17 anos), quando os três foram surpreendidos pelo estudante de medicina Alexander Morton (24 anos), que dirigia o seu conversível importado na contra-mão e acima do limite de velocidade.
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''O exames laboratoriais confirmaram que Alexander ingeriu uma grande quantidade de álcool e drogas ilícitas antes de pegar o volante, o que contribuiu para o acidente e, obviamente, o rápido falecimento do mesmo'', afirma o Detetive Castel, salientando os fatores que causaram o óbito do universitário antes mesmo da chegada da primeira ambulância no local do acidente.
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Apesar de terem sofrido apenas ferimentos leves, fontes ligadas aos dois passageiros e ao motorista do táxi informaram que os sobreviventes estão constantimente recebendo consultoria psicológica de uma junta médica do Hospital Geral de Dumont. Procurados pela nossa equipe de reportagem, nenhum dos envolvidos no incidente quiseram prestar uma declaração sobre o encerramento do inquérito.
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Mesmo tendo terminado de ler a notícia, por um bom tempo eu encarei apenas o jornal na minha frente.
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Naqueles poucos segundos de silêncio, o meu sonho se materializou diante de mim e eu pude visualizar perfeitamente o taxista Omar Santin ao meu lado, concentrado na estrada com todas as suas fibras. No banco de trás, as risadas altas e alegres de Líon e Serina eram liberadas aos borbotões, os dois nem imaginando o que iria acontecer a seguir...
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- Adrian, você está bem?
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Angel me observava com cautela, seus grandes olhos azuis me escaneando da cabeça aos pés.
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Eu gostaria de dizer à ela que estava bem - que aquilo me dera forças para continuar a minha missão - mas eu saberia que era uma mentira. A verdade era que, a cada dia que passava, as coisas pioravam mais. Descobrir que uma parte do meu sonho fora real, que esse tempo todo eu ''via'' os irmãos Biel no meu subconsciente, só me deixou mais arrasado ainda.
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- Alexander Morton... então, esse é o nome do demônio assassino.
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Nem Cirus nem Angel falaram nada sobre o assunto. Só menearam a cabeça em concordância, todo o peso do mundo pairando sobre os dois. Eles nem precisavam se dar ao trabalho de esboçar qualquer reação ao meu comentário, eu estava cem por cento certo quanto a isto.
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Com um lampejo, me lembrei do meu primeiro dia de aula e de meu pai lendo o jornal na nossa cozinha, falando sobre a conclusão das investigações de um acidente em Dumont envolvendo jovens. Depois, a imagem do Dir. Nigro, engolindo todo o seu autoritarismo e tratando Líon da forma mais afável que podia, me encheu a mente - só para ser substituída depois pelo próprio novato, sozinho na enfermaria e me confidenciando os problemas pelo qual a sua família vinha passando nos últimos tempos.
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- Como pude ser tão imbecil?... Como pude ser tão obtuso com relação aos sinais que me rodeavam?
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Mais uma vez, nenhuma resposta oral.
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Agora eu percebia que o demônio, Alexander Morton, não estava perseguindo só o Líon - mas também Serina e o taxista, Omar. Alexander Morton queria vingar a sua morte... Se vingar das três pessoas que haviam sobrevivido ao seu acidente fatal, que ele mesmo provocara.
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Fora por isso que a família Biel resolveu se mudar para Ventura. Eles estavam tentando reconstruir suas vidas novamente, bem longe das lembranças daquele terrível dia. Só que eles não contavam que a lembrança principal não estava nem um pouco disposta a ser esquecida.
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- Angel - comecei, me lembrando de algo que minha tia dissera assim que chegou na Casa-de-Bombeiros - eram eles, não eram? A família que você estava tentando ajudar em Dumont, mas que foram embora antes de você poder fazer qualquer coisa.
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- Sim - confirmou ela, simplesmente - mas eu não fazia idéia que eram eles quem você estava protegendo. Só fiz a ligação dos fatos ontem de manhã, quando encontrei o jornal na garagem. Infelizmente, ao que parece, foi tarde demais.
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- Não seja ridícula - a cortei, mais ríspido do que o necessário.
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- Como não?... Eu não sabia da existência do taxista, nem imaginava que ouvesse um acidente na história! Para mim, Alexander só estava perseguindo a família Biel por uma obsessão doentia... O pai dos garotos era tutor dele na Faculdade.
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- O quê?! - gorlejei, a confusão mais uma vez fervilhando em minha mente.
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- Você pode não saber, Adrian, mas Marcus Biel é um renomado médico-cirurgião... - enquanto falava, Cirus se inclinou sobre mim e pegou a instável pilha de jornais em meu colo.
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- Há um mês ele pediu transferência para o Hospital daqui da cidade, e só agora me dei conta do por quê - depois de uma rápida conferida, meu pai estendeu sua mão e colocou um pequeno recorte sobre a notícia que eu acabara de ler - Essa matéria aqui fala justamente da grande ironia causada pelo acidente: Um dos estagiários mais brilhantes que o Dr. Biel monitorava no Hospital Geral de Dumont quase causou a morte prematura de seus dois únicos filhos.
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Eu olhei para a fotografia séria do pai dos gêmeos e me lembrei do nosso pequeno encontro na Delegacia, à poucos minutos atrás. Será que ele suspeitava que seu ex-protegido ainda estava tentando destruir a vida de sua família?
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- Eu não sei o que pensar - disse por fim, jogando tudo que eu segurava no chão do Mustang - Parece que estou mergulhando em queda livre para dentro de um grande filme de terror...
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- Então acho melhor você se preparar por mais - recomeçou Angel, sua voz cantada e cristalina repinicando misteriosamente - Ontem à tarde, enquanto procurava mais informações sobre o Morton, acabei descobrindo algo que pode nos ajudar...
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Abrindo o porta-luvas do carro, a garota puxou duas fotocópias amassadas e as passou rapidamente para Cirus e eu. Depois de uma rápida conferida na folha, percebi que o papel era a reprodução de um documento hospitalar, mais precisamente uma ficha de internação, no nome de ''Suzana N. Leniscky''.
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- Quem é Suzana N. Leniscky?
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- Ah, eu sabia que vocês iriam perguntar - Angel recostou-se em sua poltrona, e um tímido sorriso de triunfo brincou em seus lábios - Suzana N. Leniscky nada mais é do que a ''namorada-viúva'' de Alexander Morton.
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Cirus e eu nos encaramos por um breve momento.
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- Hum, claro - pigarreou meu pai, analisando mais um vez a ficha com afinco - Mas aqui não diz por que ela foi internada recentemente em uma ''Casa de Repouso''...
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Desta vez, eu consegui ligar os pontos mais rápido do que Cirus. Afinal, o que um responsável ''normal'' faria se sua filha chegasse em casa e falasse que estava tendo encontros esporádicos com o namorado morto?
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- Angel, acho que nós precisamos urgentemente conversar com Suzana N. Leniscky.

domingo, 7 de março de 2010

Capítulo 11 - Mensagem

Aquele foi o pior domingo da minha vida.
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Deitado na minha cama, repassei mentalmente todos os acontecimentos do dia anterior: O mergulho para o inconsciente, a visão do jovem demônio sobre mim, os rostos de preocupação me rodeando na Enfermaria da Constantine, a mão de Serina alisando os meus cabelos... Era como andar em uma Montanha-Russa de emoções.
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No meio da manhã, Daniel me ligou, perguntando como eu estava me sentindo. Ele parecia realmente preocupado, mas parte do meu cérebro se perguntava como ele havia conseguido o número do meu telefone.
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- Foi como o prof. Novaz explicou - disse eu, agradecendo em silêncio a boa desculpa que o socorrista da Academia tinha providenciado para mim - Com esse estresse do último semestre, a pressão para a Faculdade... Sabe como é, a gente acaba se alimentando mau e... resultou nisto. Desidratação.
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Eu sei, estava contando uma mentira deslavada. Não estava desidratado; nunca em minha vida eu havia deixado de comer por qualquer coisa e muito menos estava preocupado com a escola. Porém eu não podia simplesmente contar para ele o que de fato aconteceu.
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- É, eu seu como é - continuou Daniel, sua voz um tanto paternalista - Mas isso não pode se repetir! E se a Equipe de Lutas por acaso ficar desfalcada para as Regionais e precisarmos de um substituto? O que iríamos fazer?
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Precisei de meio minuto para enteder o que o rapaz do outro lado da linha estava me falando. E precisei de mais um minuto para compreender boa parte das três semanas que haviam passado.
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A aproximação repentina de Daniel e dos garotos da Equipe nada tinha a ver com os irmãos Biel. De alguma forma, o capitão e os outros rapazes descobriram o meu pequeno duelo contra Oliver Nigro e dois de seus cumpinchas mais habilidosos. E agora, para meu espanto, eles me queriam perto do time - como um verdadeiro reserva de luxo.
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- Eu... eu não sei o que dizer.
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- Não se preocupe com nada - disse Daniel - Apenas se cuide, valeu? Nos vemos amanhã na escola.
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Antes que eu me recuperasse da surpresa e conseguisse recusar o convite de forma gentil, a ligação acabou.
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- Ótimo... agora sim ferrou tudo - murmurei para mim, recolocando o aparelho no gancho e indo para a cozinha preparar o almoço.
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Como eu esperava, nem Cirus nem Angel estavam em casa. E, mesmo se estivessem, seria eu mesmo quem iria preparar a refeição de qualquer forma. Por isso, enquanto remexia na geladeira da cozinha procurando algo que fosse rápido e fácil, tudo o que eu fazia era pedir a Deus que nenhum integrante da Equipe de Lutas da Constantine se contundisse durante esse último semestre.
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Já estava bastante difícil de me concentrar só nas ações psicóticas de uma criatura das trevas vingativa. Acho que não precisava também de um processo por Lesões Corporais Graves para arruinar a minha vida.
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Foi pensando nisso que eu acabei me lembrando de Líon e Serina. Eu queria ligar para os dois, saber como eles estavam, mas sabia que seria esquisito se eu o fizesse. Segundo os últimos acontecimentos, era eu quem precisava de atenção, não os gêmeos. Perdido neste torpor, escutei a porta de entrada da Casa-de-Bombeiros ser aberta e os passos pesados de Cirus se aproximarem da cozinha, seu estômago roncando ruidosamente.
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- Hum, torta de queijo! - exclamou meu pai, pegando uma garrafa de água e se escorando no mármore da pia, onde eu preparava o almoço - E aí, garoto, como você está se sentindo?
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- Normal - respondi, olhando diretamente para o tabuleiro untado de mantega em minhas mãos.
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Cirus me encarou, esperando que eu continuasse a frase, porém eu não falei nada. Quando o meu pai me pegou ontem na escola, não comentei nada sobre o sonho que tive, o sonho que me fez desmaiar do nada. Entretanto, como sempre, ele sabia que eu estava escondendo algo dele. E como sempre, eu me sentia culpado por isso.
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- Onde está a Angel? - perguntei, tentando desesperadamente mudar de assunto.
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- Não sei - disse ele, levando mais uma vez a garrafa de água a boca - Hoje de manhã, quando estávamos na garagem, ela disse algo sobre ''repor nossos estoques''... Sabe como aquela menina é, no mínimo tá aprontando alguma coisa.
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Concordei com a cabeça, mas ainda assim não olhei para ele diretamente.
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Depois de alguns minutos, logo após eu ter colocado a massa da torta no forno para assar, Cirus de esparramou em uma cadeira e me avaliou, seus olhos cinzentos tão brilhantes quanto o flash de uma máquina fotográfica.
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- Será que já disse para você que eu te acho o pior mentiroso do mundo?
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Sentindo um arrepio na espinha, me virei para ele e suspirei, obrigando os meus lábios a falarem tudo o que eu estava ocultando desde a noite anterior.
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- O que aconteceu na escola não foi um desmaio clínico - disse por fim, o peso que estava sobre as minhas costas se agravando gradativamete - Algo me fez ficar inconsciente...
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- ... e eu acho que sei quem foi - completou Cirus, suas feições duras e sérias.
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- Pai, como isso é possível? - questionei, lutando para que minha voz mantivesse o tom calmo - Eu não sei o que ele está planejando, mas eu sinto como se estivesse enlouquecendo!
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- É esse o seu problema, Adrian - murmurou meu pai, se colocando ao meu lado em um átimo de segundo, seu braço esquerdo descansando de forma gentil nos meus ombros tensos - Você se deixa abalar facilmente. De cara ele percebeu isto, e está óbvio que o demônio está usando suas emoções ao favor dele.
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Mesmo eu não querendo admitir, Cirus estava coberto de razão ao meu respeito. Por isso que, depois de servir o almoço para nós dois (Angel ainda não havia aparecido) e arrumar a bagunça que tinha ficado na cozinha, fui para o meu quarto e me obriguei a pensar com clareza.
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Eu sabia que meu pai não iria me interromper pelo resto dia - domingo era o ''Dia de Total Reclusão'' dele - então não vi necessidade de trancar a porta.
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Durante a tarde inteira, e boa parte da noite, vaguei de um lado para o outro - forçando a mim mesmo a me controlar. Se aquela criatura estava pensando que iria usar meus próprios medos contra mim mesmo, ela podeira tirar o seu par de asinhas couráceas da chuva.
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Antes que desse por mim, a escuridão da madrugada se dissipou e os primeiros tons do alvorecer iluminaram o vasto céu aquarelado de Ventura. Fiquei um curto tempo sentado na minha cama, observando a constelação de poeira matinal atravessar a janela do quarto, até que o relógio digital soou o seu alarme e eu me vi levantando e me arrumando mecanicamente para o novo dia de escola.
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Não procurei por Cirus, muito menos por Angel. Para falar a verdade, nem tinha a noção se minha tia havia voltado para casa ontem. Tudo o que eu queria era sair dali e ver se Serina e Líon estavam bem... Se nada de ruim havia acontecido com eles enquanto estava longe. Por isso que eu acho que dá para imaginar de uma forma bastante clara como eu fiquei surpreso quando abri a porta da Casa-de-Bombeiros, pronto para partir, e me deparei com os gêmeos empoleirados na soleira da entrada - os rostos idênticos franzidos em apreensão.
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- Hei, o Belo Adormecido finalmente saiu do castelo! - exclamou Líon, ao mesmo tempo em que Serina me estendia um grande copo de papel repleto de chocolate quente, seu sorriso solar se espandindo pelo rosto.
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- Nós estávamos preocupados - disse ela, encolhendo os ombros delicadamente assim que viu a minha expressão confusa - Não paramos em casa ontem, mas não fiquei um minuto tranquila... Você realmente nos assustou no sábado!
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De forma inconsciente, a garota ergueu a mão direita e passou pelo meu braço, como se para ter certeza que era eu mesmo ali na frente dela. Em resposta ao seu toque, pude sentir minhas orelhas ficarem quentes, e o velho rubor se espalhando pelas minhas buchechas.
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- Eu... eu estou bem - disse por fim, assim que consegui tomar o controle das minhas cordas vocais. - Foi só um ataque de fraqueza. Não precisava se preocupar.
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Muita mais poderosa do que da primeira vez, a sensação da ligação que me tomava sempre que eu encontrava Serina encheu o ar à nossa volta como uma tempestade elétrica. Por um segundo, me permiti mergulhar nos olhos acastanhados da garota, sua pele castanha resplandecendo contra meu rosto cor-de-neve.
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- Será que o dois já terminaram de flertar? - balbuciou Líon, esfregando suas mãos uma na outra - O dia está lindo como sempre, mas aqui fora parece que está caindo neve!
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Como se despertasse de um sono profundo, Serina olhou envergonhada para a mão que continuava a alisar o meu braço esquerdo. Assim que ela recolheu o seu toque, minha pele protestou indignada. Fingindo não escutar o martelar desvairado do meu coração, tranquei a porta às minhas costas e acompanhei os dois na diração da escola.
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- Hum, então Adrian... - começou Serina, passando o seu braço sobre o ombro do irmão, tentando ao máximo disfarçar o que havia acabado de acontecer - Você soube? Já começaram a planejar o nosso Baile de Formatura.
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Em resposta à novidade, senti os meus ombros se encolherem e minha garganta se fechar com um ruído fraco.
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O Baile de Formatura da Academia Constantine era mais uma tentativa frustrada e clichê do Diretor Nigro de induzir cada veterano de sua instituição à se sentir em um filmeco adolescente feito para a televisão. Como a cerimônia era o auge do reinado dos Privilegiados, não precisava pensar muito por que eu não gostava nem um pouco me de imaginar pisando no salão de festas do Grand Hotel Ventura - onde sempre aconteciam os eventos de gala da cidade - na noite do Baile.
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Para piorar as coisas (ou refrescar ainda mais a minha memória), assim que chegamos ao campus da Academia, vi um grupo de zeladores estendendo na Torre do Relógio uma enorme faixa vermelha com os dizeres: ''16º Baile Anual de Formatura - Uma Noite Além da Imaginação (Ingressos na Secretaria)''.
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- Urgh, que tipo de tema é esse? - indagou Líon, olhando tão exasperado para o cartaz quanto eu - ''Uma Noite Além da Imaginação''?! Já posso imaginar as fantasias bizarras que vão surgir no dia...
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Serina parecer indginada com o comentário do irmão. Depois de olhar do novato para mim, ela meneou a cabeça com reprovação e saiu apressada na direção do Pavilhão de Tortura, não antes de murmurar um ''garotos...'' impiedoso para nós dois.
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- Mas o que foi que eu fiz? - resmunguei admirado, ao passo que olhava o rastro deixado pela garota enquanto se afastava de onde estávamos - Eu não disse nada de ruim sobre esse maldito Baile!
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O garoto me encarou com uma careta que dizia claramente coisas como ''ela estava jogando verde'' e ''uma imagem vale mais do que mil palavras'', mas no fim, ele acabou falando com um calma bastante fingida - Basta comprar os convites, levá-la para esta tal festa e ela vai se esquecer de tudo... Eu garanto.
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Sentindo o sangue se concentrar em minha face, encarei Líon sem saber o que fazer. Revirando os olhos deliberadamente, o rapaz girou nos próprios calcanhares e me puxou para os vestiários, seus passos tão apressados que quase me obrigou a correr atrás dele.
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Para nosso espanto, não se via o sinal da Treinadora Kara em lugar algum da entrada do Pavilhão - o que era bastante atípico, já que toda as segundas-feiras ela recebia os alunos do último ano em frente ao portão de folhas duplas do ginásio.
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- Deus, esse lugar está tão escuro! Onde está todo...
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Antes que Líon pudesse completar a pergunta, um grito alto e agudo quebrou o silêncio do Pavilhão e se chocou contra a parede atrás de nós, de forma fria e cruel. Não pensando em nada, olhei brevemente para o novato ao meu lado e corremos o máximo que podíamos - o máximo que eu podia sem revelar o meu segredo - e inrrompemos na área da piscina, o sangue fervendo em minhas veias.
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- Eu não estou enchergando nada! - exclamei, tateando as cegas pela escuridão, à procura da caixa de força do Pavilhão de Tortura. Quando encontrei o interruptor certo, puxei a alavanca para cima e cobri a meu rosto, esperando que as minhas pupilas se dilatassem até que eu me acostumasse com a forte luz artificial e pudesse ver alguma coisa.
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Parado á alguns metros na minha frente se encontrava Líon.
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O garoto estava meio curvado e meio agachado sobre uma forma emaranhada e um pouco estendida no chão de mármore, seu rosto oculto pelas sombras produzidas por seu cabelo lanzudo. Só pude destinguir os contornos outrora elegantes e retos de Serina quando me aproximei da cena, o corpo de seu gêmeo a cubrindo gentilmente - como se a protegesse de algo que eu ainda não conseguira decifrar.
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- O que foi que aconteceu? - sussurei sem fôlego, minha voz tomada pelo choque de ver as lágrimas de terror escorrerem livremente pela face delicada da garota, seu uniforme desalinhado e amarrotado.
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Com um leve movimento, o garoto ergueu o queixo e me indicou o que estava assustando sua irmã, seus grandes olhos escuros denunciando todo o medo que ele estava sentindo no momento. Um pouco mais adiante, uma mancha vermelha escorria pelo chão.
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Foi o cheiro que denunciou tudo. Antes que eu chegasse mais perto, o odor metálico e pungente me atingiu em cheio. Respirando forte, olhei para o piso aos meus pés e me deparei com uma única palavra escrita no chão, em grandes letras vermelhas: CHEQUE.
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- Isto... isto é sangue - suspirou Serina com força, as lágrimas ainda manchando o seu rosto - Isto foi escrito com... com sangue.
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Mas aquilo não era tudo.
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Um pouco mais à frente, o corpo de um homem alto e atlético boiava de bruços na piscina, uma horrenda mancha carmesim tomando conta da água ao seu redor. Meu estômago embrulhou na hora, mas nada teve haver com o sangue espalhado por todo o lugar.... Era pelo simples fato de eu conhecer quem era o estranho, mesmo estando de costas para mim.
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Ele era o taxista - o cara que estava ao meu lado todas as vezes em que sonhava com o demônio que perseguia Líon.
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- Temos que sair deste lugar... Agora!
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Sem dar chances do novato ou sua irmã protestarem, guinchei os dois pelos ombros e os levei à passos largos para fora do Pavilhão de Tortura.
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Eu tinha certeza, a mensagem escrita no mármore era para mim. E, por mais que não parecesse, o seu significado era bastante simples e claro: a primeira rodada do jogo havia acabado... e se eu não corresse logo, esta seria apenas a minha primeira derrota.