segunda-feira, 3 de maio de 2010

Capítulo 13 - O Despertar

Era noite, e o bosque estava escuro como breu. O topo dos grandes eucaliptos se escondiam no infinito negro à minha cabeça, e uma névoa fina e rastejante impregnava-se no musgo aos meus pés, formando um imenso oceano verde e branco.
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Eu sabia que estava na Reserva Florestal de Ventura.
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Tudo naquele lugar, desde as árvores até o formato das elevações do terreno mais à frente, me eram familiar. O que não sabia, na verdade, era o que eu estava fazendo ali, parado no meio do nada.
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- Achei que nunca chegaria... - sussurou uma voz feminina, clara e musical, bem atrás de mim.
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Sobressaltado, virei-me com pressa, preparado para atacar o que estivesse à espreita. Só não contava encontar com Serina, sentada tranquila sobre as raízes de um imponente eucalipto, os cabelos cor-de-chocolate ondulando ao seu redor. Mesmo nas sombras, sua pele morena irradiava um brilho dourado e quente, intensificado pelo belo vestido marfim que usava.
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- Eu...eu... eu não esperava lhe encontrar aqui - respondi, mal disfarçando minha surpresa.
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Sem se deixar abalar pelo meu mau jeito, a garota se levantou da base da árvore com tal leveza que me pareceu que ela nem havia feito algum esforço. Antes que eu pudesse pensar em alguma coisa, Serina já estava diante de mim, seu rosto angelical apenas à centímetros de distância do meu.
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- Você é bonito - disse ela simplesmente, erguendo a mão direita com delicadeza e acariciando minha face.
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Não posso descrever com palavras tudo o que senti naquele momento. Para falar a verdade, acho até que não tenho coragem de contar algumas coisas que pensei quando ela me tocou. O que eu posso dizer é que meu corpo reagiu das maneiras mais estranhas... Meu coração disparou como cavalos em uma corrida, meu sangue ferveu como se eu ardesse em febre e minha garganta se fechou - me obrigando a respirar por um breve e lento arquejo.
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- Me desculpe - murmurei, enquanto ela continuava a explorar o meu rosto com as mãos. Para meu espanto, Serina aproximou-se mais um passo de mim e encostou a sua bela cabeça em meus ombros.
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Foi aí que entrei em parafuso.
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Quase que tomado por uma força sobrenatural, apertei a garota firmemente entre os meus braços e mergulhei o meu nariz na base suave e perfeita de seu pescoço. Com um profundo suspiro, inspirei todo o perfume adocicado que sua pele castanha exalava, correndo os meus dedos com cuidado pelos seus cabelos e por suas costas.
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E assim ficamos os dois, por um tempo que me pareceu uma eternidade... até que toda a cena mudou em um piscar.
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A névoa, que antes era alva e rasteira, começou a se elevar perigosamente - ganhando um mórbido tom de chumbo. Um vento frio e úmido vergastou os nossos cabelos, ao passo que a estranha sensação que eu havia sentido à um mês na piscina da Constantine começou a tomar conta do meu corpo novamente.
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Rápido como um relâmpago, coloquei Serina sob a proteção de minhas costas e me agachei, me preparando para o ataque que estava por vir. Mesmo sem poder vê-la, eu sabia que a garota deveria estar congelada no lugar - suas mãos, apoiadas em meus braços, estavam gélidas e escorregadias.
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- Não se preocupe, vai ficar tudo bem... - disse em um tom baixo, mesmo sem ter plena convixão do mesmo.
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Vasculhei a floresta à minha frente, procurando por qualquer sinal da coisa que se aproximava. Mesmo forçando os meus olhos ao máximo, eu não enxergava nada a não ser as árvores e a neblina. Aquilo não me tranquilizou. Mesmo não o vendo, eu sentia que havia algo por ali, espreitando a mim e a garota - só esperando o momento certo para aparecer.
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E ele apareceu... mais cedo do que eu esperava, e muito mais rápido do que eu julgava ser capaz.
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Surgindo em meio a neblina, Alexander Morton emergiu do espesso mar branco-pérola, caminhando lentamente na direção da campina em que eu e Serina estávamos. O rapaz trajava apenas uma velha calça de brim preta e seus cabelos ruivos ricocheteavam no alto de sua cabeça como violentas chamas vivas. Os seus olhos, negros e com as pupilas dilatas iguais à de uma fera em caça, transmitiam uma frieza perversa que destoava por completo do rosto bondoso; um verdadeiro lobo na pele de cordeiro. Muito mais fatal e cruel.
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- Quem é ele? - perguntou Serina, sua voz cantada tomada de pânico.
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- Não tenha medo... Tudo vai se resolver.
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Ao escutar nosso pequeno diálogo, o demônio parou e inclinou a cabeça para o lado. Seu rosto estava impassível, livre de qualquer expressão. A esta altura, eu já podia imaginar o que estava para acontecer. Com um último impulso, me afastei brevemente de Serina, colocando-me mais à frente - dando uma chance, por menor que fosse, para a garota escapar.
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Por um minuto, ficamos parados - apenas nos encarando. Eu sabia que o momento do ataque estava para chegar. E também sabia que ele seria letal. Assim, quando o ser se agachou, pronto para dar o bote, eu respirei fundo. Era o meu fim, e não via como poderia terminar de outra maneira. Sem pestanejar, Morton lançou-me um último sorriso e saltou - tão alto como um gato e tão rápido como uma pantera.
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Não pensando em nada, fechei os meus olhos, me preparando para a dor que viria me atingir... E ela veio. Menos penosa do que eu podia supor, e muito mais gelada.
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Despertei enroscado no meu cobertor e estatelado de cara no chão. Minha cabeça martelava devido ao impacto da queda e os meu tórax ardia com a falta de ar. Com os dentes cerrados, inspirei profundamente e tentei me recompor. Sem paciência alguma, puxei o lençol que me enrolava com força e o joguei em cima da cama. O quarto ainda estava escuro, e a rua lá fora não emitia um barulho sequer.
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Acordado na madrugada de novo. Quanta novidade.
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Ainda sentindo o meu corpo, me apoiei desengonçadamente na janela e me pus a observar a cidade. Diferente das outras noite, o céu estava nublado, coberto por nuvens macabras de cores esverdeadas. Os velhos edifícios pontiagudos do centro recortavam a paisagem de um jeito nem um pouco acolhedor. E ao fundo, os imensos eucaliptos nas encostas das colinas agitavam-se furiosamente contra o rotineiro vento ártico.
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Sem pensar em nada, fechei a janela contra a friagem que invadia o meu quarto e me virei na direção da cama. Mesmo tendo uma visão apurada no escuro, não consegui evitar o encontrão que dei na escrivaninha. Com o solavanco inesperado, todas as coisas que estavam sobre a mesa se esparramaram no piso do quarto, me obrigando a me abaixar e arrumar tudo.
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Bufando de contrariedade, peguei a maioria dos papéis, meu player de mp3 e a luminária desligada e empurrei tudo de uma vez só para o tampo do móvel. Quando me preparei para guardar as folhas novamente dentro da pasta onde deveriam ficar, me deparei com o desenho de Serina que eu havia feito assim que as aulas começaram.
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Ao olhar para o rosto no papel em minhas mãos, senti o meu estômago despencar. Desde a segunda feira retrasada, quando o corpo de Omar Santin foi encontrado boiando no meio da piscina olímpica do Pavilhão de Torturas, eu não tive mais notícias dos gêmeos.
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Confesso que no começo achei que esta havia sido a melhor forma dos dois lidarem com os acontecimentos - afinal, não se falava em outra coisa nos corredores da escola (pelo visto, eu era o único em toda a cidade que não sabia dos motivos da mudança de Líon e Serina para Ventura), e vez ou outra eu reconhecia um repórter-abutre rondando a porta de entrada do Dr. Biel e sua família atrás de um furo jornalístico.
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Mas depois de uma semana, quando a poeira - e as fofoquinhas infantis - finalmente começou a baixar, vi que a auto-reclusão obrigatória planejada pelos dois não era nem um pouco temporária.
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- Eles estão bem, Adrian - falava a mãe dos garotos, toda vez que eu ligava para a casa dos irmãos em busca de algum sinal de vida - Só precisam de um pouco de descanso... Não precisa se preocupar.
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''Tarde demais'', eu resmungava, assim que recolocava o aparelho no gancho. A questão na verdade era que eu, enfim, havia despertado - e a cada dia que passava, via com mais clareza o perigo real que Alexander Morton representava.
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Contrariando todas as expectativas, ele tinha plena consciência dos poderes que estava ao seu dispor; aparecera para um ser humano comum, quebrando todos os protocolos e paradigmas; dera cabo de um homem, da forma mais cruel possível - e ao que parecia, não iria sussegar (ou deixar ser apanhado por um Arcano em Treinamento) enquanto não superasse a sua morte...
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... enquanto não se vingasse de Líon e Serina.
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Com a cabeça cheia de temores e preocupações, meu humor na semana seguinte decididamente foi para o buraco. Mesmo depois de descobrir um homem morto dentro do campus restrito e vigiado da Constantine, as pessoas (principalmente os alunos) não pareciam mais se perturbar tanto com o assunto.
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Se antes o tom da conversa girava em torno de perguntas do tipo ''quem será que colocou o taxista aqui na Constantine, e por quê?'', agora o burburinho era sobre futilidades como ''que tipo de fantasia eu devo usar na festa de Formatura?'', ou ''Será que a minha gata vai deixar eu ir para a faculdade virgem?''.
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Acredite, não inventei nenhuma das pérolas citadas.
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O ápice da minha impaciência ocorreu na sexta-feira, pouco antes das aulas acabarem. Daniel e eu guardávamos o nosso material na mochila (o capitão da equipe de Lutas ocupava o lugar que rotineiramente era de Líon), quando Oliver Nigro se aproximou de nós, mais magro e pálido do que nunca.
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- Ora, vejam só - resmungou o rapaz ao meu lado, assim que peecebeu a presença do filho do Dir. Nigro - a que devemos a honra de receber a visita do Rei da Academia Constantine?
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Por um segundo, pensei que Oliver fosse responder à Daniel com a sua grosseria costumeira - mas, para minha surpresa, tudo o que ele fez foi esboçar um sorriso apático para o capitão e levantar as duas mãos, em sinal de rendição.
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- Calma aí, amigão... Vim em missão de paz!
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''Missão de Paz''? Esse cara só podia estar querendo tirar um sarro da minha cara...
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Antes que eu desse por mim, uma risada sarcástica e grotesca escapou da minha boca, paralisando no lugar o restante da turma que ainda se retirava da sala de aula. Impassível, Oliver me encarou demoradamente, seu rosto congelado em uma expressão sombriamente divertida que (não sei por que motivo) me fez tremer por dentro.
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- Como eu estava dizendo - continuou o rapaz, sem tirar aquele olhar estranho de cima de mim - vocês devem saber que o Baile de Formatura está se aproximando, não?
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Eu me controlei para não responder. É claro que nós sabíamos disso - se a pessoa fosse surda o suficiente para não escutar o burburinho pelos corredores, bastava olhar para as dezenas de flâmulas e cartazes coloridos espalhados estrategicamente pela escola.
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- Sim... E o que nós dois temos a ver com isso? - perguntou Daniel, tirando as palavras da minha boca.
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Sem pestanejar, Oliver abriu o seu paletó e tirou de um bolso interno dois folders impressos em papel vermelho, do mesmo tom usado nos materias de circulação interna da Academia.
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- É que, para alguns, existe um evento muito mais esperado do que o Baile organizado pela escola - o filho do dir. Nigro olhou para os lados e diminui o seu tom em duas oitavas - e, cai entre nós, não estou falando do última dia de aula!
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Por um breve momento, o capitão da Equipe de Lutas e eu trocamos uma significativa mirada. Só a idéia de estar tendo uma conversa ''conspiratória'' com Oliver me causava arrepios... Ainda mais agora, quando o rapaz decididamente resolvera explorar o seu lado mais sombrio.
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- Você ficou maluco?! - esbravejou Daniel, picotando rapidamente o fôlder em sua mão e pegando a mim e ao líder dos Privilegiados de surpresa - Se o seu pai te pega com isso, eu nem quero estar perto para saber o que vai acontecer!
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- O que Arthur Nigro não sabe, não precisa saber - retrucou Oliver, deixando transparecer em sua voz uma ligeira ponta de amargura - Além do mais, a festa vai acontecer fora do campus da Constantine...
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- Hei, do que vocês estão falando? - interrompi, me sentindo mais perdido do que um escoteiro no meio da cidade - E que história é essa de festa?
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Com um movimento rápido, Daniel puxou o encarte remanescente da minha mão e o elevou na altura do meu rosto. Depois de um minuto de leitura, meu estado de espirito estava tão alterado quanto o do garoto ao meu lado.
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- Vocês estão planejando uma ''Festa dos Veteranos''? - perguntei, não acreditando no que estava escrito no papel.
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Em resposta à minha exaltação, tudo o que Oliver fez foi se virar novamente para mim e me lançar aquele olhar estranho.
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Oras, como ele esperava que eu reagisse?
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A Festa dos Veteranos nada mais era que uma espécie de preparação para o Baile de Formatura não supervisionada, onde os estudantes tinham a oportunidade de se esbaldarem até o dia raiar, entornando litros e mais litros de álcool e fazendo coisas que não fariam nem em sonhos na frente do pais.
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Acho que nem preciso me dar ao trabalho de dizer que este evento era terminatemente abominado pela Junta de Pais e Mestres da Academia Constantine - com direito a suspensão registrada na ficha escolar em todo aquele que ousasse pensar em realizar a festa.
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Mas é claro que para Oliver e todos os seus seguidores Privilegiados, esta regra não passava de uma lenda.
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- Só queria deixar claro que eu informei pessoalmente todos os alunos do último ano sobre essa nossa ''reunião'' - dessa vez, toda a simpatia e humor que Oliver havia usado até então foi substituída rapidamente pela sua usual ameaça jovial - Então, se alguém der com a língua nos dentes, eu e meus amigos saberemos exatamente quem foi.
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Aquilo foi a gota d'água.
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Se já não bastasse ter que me preocupar todos os dias com os planos malignos de um jovem demônio perseguidor, agora tinha que também ter o cuidado de não estragar a bacanal proibida dos alunos do último ano... Quem eles pensavam que eu era?
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- Acho que você se esqueceu da nossa última ''conversa''! - explodi, o sangue pulsando em minhas orelhas.
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- Não me esqueci não - o filho do Dir. Nigro se aproximou de mim de forma ameaçadora, nós dois separados apenas pelo espaço ocupado por Daniel Maltha - E é justamente por isso que estou lhe avisando...
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Antes que eu pudesse pular em seu pescoço, Oliver girou sobre os calcanhares e deixou a sala de aula, seu cabelo louro ressecado furstigando à brisa do início da tarde e seus ombros caídos, como se carregasse sobre si todo o peso do mundo.
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Era engraçado, mas mesmo eu estando ali no meu quarto, um dia inteiro depois desse nosso encontro, aquela vontade louca de esganar meu ''arqui-inimigo de colegial'' ainda não havia passado - e dessa vez eu nem podia colocar a culpa em Alexander Morton por isso.
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- Problemas no paraíso?
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Depois de quase dar um mortal de costas pelo susto, me virei rapidamente na direção da porta e vi tia Angelina parada na soleira do meu quarto, vestindo um leve hobe de seda rosa sobre seu pijama de mesma cor, os cabelos prateados firmemente presos em um rabo de cavalo.
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- Escutei um barulho - disse ela, apoiando-se na parede com seu jeito displiscente - vim ver o que era.
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- Não... não foi nada - me apressei a dizer, guardando o desenho de Serina em minha pasta - só ''coisas da escola'', sabe como é...
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- Sim, acho que sei - num piscar de olhos, Angel moveu-se da entrada do meu quarto e foi até a beirada da minha cama, onde o folder vermelho da Festa dos Veteranos jazia incólume - E aí, preparado para amanhã?
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Sinceramente, não sabia o que responder.
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Desde de segunda feira, quando por fim eu abri os olhos e descobri toda a verdade sobre a história por detrás da vinda dos irmãos Biel à Ventura, a coisa que eu mais queria fazer era me encontrar com Suzana N. Leniscky e interrogá-la de todas as formas possíveis para poder saber como Alexander Morton apareceu para ela, e o que ele poderia estar tramando. Porém, agora que faltava poucas horas para a nossa visita à Casa de Repouso, eu não sabia muito bem o que fazer por lá.
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- Será que esta é uma boa idéia? - perguntei, uma estranha sensação de vazio se apoderando da boca do meu estômago.
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- Esta é uma ótima idéia - respondeu Angel com simplicidade - Além do mais, você quer que algo de ruim aconteça com o seu amigo? Quer que este tal de Morton consiga aprontar alguma coisa com a Serina?
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- É claro que não! - exclamei, minha voz mais feroz do que o necessário.
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- Então está esperando o quê para ir dormir?!
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Aceitando o conselho com determinação, guardei minha pasta de desenhos na gaveta da minha escrivaninha, puxei os lençóis que estavam espalados pelo chão e me esgueirei para cima da cama, as molas do colchão protestando ruidosamente sob o peso do meu corpo. Minha tia estava certa; eu estava em uma missão... Uma missão cujo o prêmio nada mais era do que a salvação de duas pessoas que haviam deixado o meu mundo de cabeça para baixo. Não havia tempo para eu ter um ataque de ''dilemas adolescentes''.
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- Angel - sussurrei, me dando conta de um detalhe somente quando me encolhi debaixo da proteção e do calor dos meus cobertores - Por que você deu dois pesos diferentes para a situação do Líon e da Serina?
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- Bom, acho que todos nós sabemos muito bem o por quê... - foi tudo o que ela disse quando apagou a luz do corredor e se retirou elegante e graciosa do meu quarto, um sorriso conspiratório lhe tomando a face.
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PS: Pessoal, desculpa a demora por um novo capítulo, de verdade... O mês de abril foi muito tumultuado para mim, cheio de coisas para resolver (muitas delas positivas) e acabou que eu deixei a revisão do livro um pouco de lado - mas prometo não fazer mais isto, tudo bem?  - Henri   '')