Assim que cheguei em casa, corri para cozinha. Já se passava de meio-dia, e eu podia sentir o meu estômago se contorcendo, protestando com fome. Abri a geladeira e procurei por algo que pudesse ser feito rapidamente. Por sorte, havia um pouco da lasanha do jantar da noite anterior. Peguei a vasilha, tirei a tampa e coloquei no microondas.
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Enquanto o meu almoço esquentava, enchi um copo com refrigerante e me sentei à mesa da cozinha. Não existia uma boa explicação, mas a casa parecia mais colorida. Era como se o sol iluminasse todas as janelas de um vez, dando um brilho dourado e uniforme para os cômodos. Fiquei tão distraído com esta minha nova percepção do lugar, que quase caí da cadeira quando o timer do microondas soou avisando que a minha comida estava pronta.
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Ainda um pouco estabanado pelo susto, retirei a vasilha do eletrodoméstico e despejei a lasanha fumegante sobre um prato. A fumaça que se desprendia da massa borbulhante parecia formar para mim vultos espiralantes, que se contorciam e se elevavam em minha direção - iguais às sombras que eu havia visto um pouco antes de Líon cair na piscina. ''Mais que bobagem'', pensei alto, levando a minha refeição para a sala e ligando a televisão.
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Não havia nada de interessante àquela hora. Depois de passar os canais umas duas vezes, sem encontrar algo que me chamasse a atenção, resolvi desligar o aparelho e comer o meu almoço em silêncio. Apesar da lasanha estar extremamente quente, a engoli com uma voracidade animalesca.
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Logo depois da última garfada, me arrependi do meu afobamento. A comida estava à tal temperatura que parecia que a sala estava sendo consumida por um incêndio de chamas invisíveis. Tentando consertar o estrago, bebi o refrigerante de um só gole, ao mesmo tempo em que tirava o paletó e a camisa do uniforme. Não adiantou nada - meu corpo ainda transpirava e minha garganta parecia mais seca do que nunca.
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Sem pensar em nada, voei escada acima, na direção do banheiro. Eu só precisava de um banho... talvez aquilo resolvesse. Terminei de tirar a roupa e me enfiei em baixo do chuveiro. De início, a ducha diminuiu a minha temperatura elevada - mais não melhorou em nada na minha agitação. Mas isto realmente não me surpreendia.
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Em uma única manhã havia acontecido mais coisas do que em toda a minha vida em Ventura. Conhecer Líon, o salvar de um afogamento iminente e ainda por cima ter uma reação estranha só de ver a irmã dele não eram coisas que eu esperava viver quando saí de casa pela manhã. Depois de tudo aquilo, parecia surreal que até a noite passada minha maior preocupação era um mísero pesadelo.
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Coloquei meu uniforme e minha toalha no cesto de roupas sujas e vesti meu velho moletom. Escovei os dentes com força, sem realmente ver meu reflexo no espelho, e saí do banheiro não pensando muito no que ia fazer. Deixei que minhas pernas tomassem o controle do meu corpo, guiando-me pelo corredor do 2º andar, me levando na direção do meu quarto. Antes que eu percebesse alguma coisa, já havia entrado no cômodo e me sentado de frente para o meu cavalete de desenho – um velho presente que meu avô, desenhista de mão cheia, havia me dado um pouco antes de morrer . Com uma reação natural, peguei um lápis esquecido no móvel e repousei a minha mão sobre o papel em branco.
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Foi ineperado. Assim que a ponta do grafite tocou a superfície branca, minhas mãos começaram a traçar linhas e formas. Toda a minha agitação parceia fluir unicamente para aquela zona do meu corpo, os movimentos cada vez mais precisos e retos. Parte do meu cérebro sabia muito bem o que eu estava desenhado, mais a outra parte - a consciente - se surpreendia ao ver os detalhes se formando diante dos meus olhos.
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Trabalhei com afinco por horas, às vezes apagava um canto e o redesenhava. A imagem tomava conta de todo o papel, e assim que finalmente minha mão traçou a última sombra, não pude deixar de arquejar - ao mesmo tempo espantado e maravilhado. Pois, impresso à minha frente como uma fotografia em preto-e-branco, estava a cópia exata da janela do quarto de Serina, a figura perfeita da irmã de Líon parcialmente oculta pelas cortinas.
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Por um curto espaço de tempo fiquei adimirando o desenho, a sombra da estranha ligação daquela manhã me conectando a imagem. Só o fato do rosto de Serina parecer ter sido esculpido por anjos já era motivo suficiente para prender a minha atenção ... Mas algo naquele rosto não me era estranho. A certeza disto martelava de forma insistente em minha cabeça, o por que de minha agitação ficando mais claro.
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Ela era um enigma. E eu tinha que desvendá-lo.
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O barulho da porta de entrada sendo forçada me despertou do devaneio. Instintivamente, olhei para o relógio luminoso na cabeceira da minha cama e levei um susto. Já eram seis da tarde, e eu não havia feito nada além do desenho. Com pressa, guardei a ilustração da janela de Serina em uma pasta que estava sobre a minha escrivaninha e corri para a sala.
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- E aí, garoto?... parece que o seu primeiro dia não foi tão ruim quanto esperava - Cirus me enacarou sorridente, assim que aterrizei no piso sob o poste de emergência.
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- É, mais ou menos isso... - respondi baixo, encolhendo os ombros - Acho que fiz um colega.
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Logo que eu terminei de falar, meu pai congelou no lugar. Com um movimento lento, ele girou nos calcanhares e me observou estupefato.
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- Vo.. você disse... um colega? - perguntou Cirus, os olhos esbugalhados - Você está me dizendo que Adrian Regis fez um colega?
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- Bom, foi o que eu disse! - resmunguei, cruzando os braços sobre o peito.
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- Nossa, acho que estou vendo tudo girar!
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Não pude deixar de revirar os olhos enquanto Cirus fingia perder o equilíbrio e se apoiava na estante da televisão. Era mais uma pérola do momento Filho - Pai. Sem perder tempo vendo a gracinha do meu responsável crianção, cruzei a sala em passos largos e me sentei pesadamente na poltrona ao canto.
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- Se o senhor já terminou de me fazer de bobo...
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Cirus se permitiu um último sorriso e pendurou suas chaves no gancho ao lado da porta. Com passos firmes, ele caminhou na direção do sofá à minha frente, acomodando-se pesadamente com um olhar ainda divertido.
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- Tudo bem, tudo bem - murmurou ele, despenteando os cabelos negros de uma forma marota - Então, o que você saber?
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Eu sabia que ele faria esta pergunta, mas como sempre, a sua falta de rodeios ainda me impressionava. Me controlei, respirando fundo, então resolvi explicar tudo - desde o começo, nos mínimos detalhes. Contei como conheci Líon no pátio, falei de como ele foi paparicado pelo Dir. Nigro até chegar ao ponto principal da conversa: o incidente no Pavilhão da Tortura.
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Durante toda a minha descrição do atentado, o rosto de Cirus se transformou de divertido para apreensivo. Quando terminei minha breve narração, ele fechou os olhos de forma concentrada e balançou vagarosamente a cabeça para cima e para baixo, como se coloca-se engrenagens invisíveis para funcionar só com a força do pensamento. Continuei sentado na poltrona, meus braços envolvendo minhas pernas, esperando pacientemente o veredito dos fatos ocorridos naquela manhã - coisa que aconteceu meio minuto depois.
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- Hum, interessante - começou Cirus, abrindo os olhos - Você disse que sentiu algo parecido como um imã lhe atraindo para o garoto Líon, um pouco antes dele escorregar da plataforma?
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- Sim...
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- E também que viu um garoto... alguém que você nunca viu na vida e que, pelo visto, só você o havia notado... empurrando o seu colega do alto da plataforma?
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- Sim... - respondi, desta vez mais nervoso do que antes.
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- Hum, interessante - repetiu Cirus, pondo-se de pé e caminhando na direção da janela à minhas costas - Pode parecer estranho, mais não exite outra explicação!
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Meu pai se virou para mim e, desta vez, sua face trazia uma expressão de surpresa. Sua boca se entreabriu boquiaberta e seus olhos cinzentos pareciam querer saltar das órbitas.
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- Filho - disse ele, num tom mais baixo que um sussurro - acho que o seu colega está sendo perseguido por um... demônio.
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- O quê?! - exclamei, alarmado demais só de imaginar algo como aquilo.
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O que Cirus estava me dizendo não fazia o menor sentido. Eu já havia visto um demônio antes. Para falar a verdade, eu já havia visto uma dezenas deles. E uma coisa era certa: todos, sem exceção alguma, não lembravam em nada o garoto que empurrara Líon da plataforma da piscina.
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- Pai, isto não pode ser possível - resfoleguei, começando a sentir o ar me faltar nos pulmões - Eu já vi demônios antes, e tenho certeza que saberia reconhecer um. Mas o cara da Constantine... não, ele parecia tão comum... tão humano!
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Cirus meneou a cabeça em consentimento. Ao que parecia, ele esperava que eu tivesse aquela reação.
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- Eu sei, eu sei - concordou ele, ainda balançando a cabeça - Eu prestei bastante atenção ao seu relato. Mas Adrian, acredite, todos os demônios que você já viu nesses seus dezoito anos - por mais breve que foi o momento - já foram exatamente como o rapaz misterioso da sua escola.
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Eu ainda não podia acreditar. Como se fosse possível, expeli o pouco ar que me restava nos pulmões e apertei ainda mais o abraço que dava em minhas pernas. Percebendo a minha reação, Cirus se postou no braço da poltrono aonde eu estava e começou a afagar ligeiramente o topo da minha cabeça.
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- Fica calmo, amigão, isto tudo pode ser resolvido bem rápido - prometeu ele, agitando um pouco mais rápido os meus cabelos, se esforçando ao máximo para demonstrar confiança no que estava dizendo. - Afinal, ao que parece, o demônio de Líon ainda está em um estágio inicial... E como dizem, quando o mal é descoberto no começo, ele pode ser neutralizado mais rápido.
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- ''O demônio de Líon ainda está em um estágio inicial''... - repeti , não entendendo patavinas sobre o que meu pai estava falando - O que o senhor quer dizer com isso?
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Avaliando a minha confusão, Cirus se levantou do braço da poltrona e se postou na minha frente com os braços cruzados. Eu reconheci aquele movimento. Significava que meu pai estava pronto para me dar mais uma ''Lição de Como Ser Um Arcano''.
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- Adrian - começou ele, sua voz já no modo ''professor'' - você sabe como ''nasce'' um demônio?
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Mesmo tentando me controlar, tive que revirar os olhos diante da pergunta. É claro que eu sabia como os demônios haviam nascidos. Acho que até quem não era um Arcano sabia. Porém, avaliando a minha rápida conclusão, Cirus meneou a sua cabeça negativamente e continuou:
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- Não, não estou falando dos ''Originais'' ... O que estou perguntando é se você sabe como os demônios de hoje, aqueles que nós enfrentamos, surgem.
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Aquilo sim me pegou de surpresa. Que diferença poderia haver entre os ''Originais'' e os demônios que os Arcanos enfrentavam quase todos os dias? Mas uma vez naquele dia parecia que pai falava uma língua que eu não conhecia.
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- Eu acho que não estou entendendo aonde o senhor quer chegar... - confidenciei, a confusão crescendo cada vez mais em minha mente.
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Com outro aceno, Cirus se distanciou de mim e postou-se no sofá mais a frente, a resignação de ter que esplicar algo que parecia óbvio para ele estampada em sua face.
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- Filho.. - Cirus piscou, o meio sorriso brincando em seus lábios - os seres que enfrentamos não são os mesmos das Primeiras eras. Os que nós enfrentamos só podem atuar no mundo físico - diferente dos ''Originais''.
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Assenti devagar, começando a entender o que ele me falava.
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- Então, como nascem os ''nossos'' demônios? - perguntei, já tentando imaginar qual seria a respostas.
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- Bom, é uma história um pouco complexa - confessou Cirus, encolhendo os ombros ligeiramente - Basicamente, todos eles já foram humanos.
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- Ja foram o quê?! - exclamei, o choque cobrindo a minha face.
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- Isso mesmo, já forma humanos - repetiu meu pai, não alterando o seu tom calmo - Na verdade eles são justamente isto: Humanos que morreram mas que não completaram a passagem devido a algum impencílio.
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Impencílio? Que tipo de impencílio poderia poderia aprisionar alguém na forma eterna de uma criatura das trevas?
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- Geralmente, o rancor - continuou Cirus, antevendo a minha pergunta antes mesmo de fazê-la- ou o ódio extremo. Somente esses dois sentimentos poderiam ter o poder de confinar uma alma aqui na terra e transformá-la em um demônio, mesmo o corpo dessa pessoa estando morto.
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- Mas isto é horrível! - exclamei, o choque e o medo presentes tanto na minha voz quanto em meu rosto.
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- Eu sei - concordou meu pai, o olhar mais penetrante a cada palavra - Mas é a verdade. Quanto mais essa alma guarda este rancor, ou este ódio, mas ele se transforma em ser negro. Por isso o jovem que você encontrou lhe pareceu diferente dos outros demõnios que encontramos... Ele ainda está no começo do processo... ainda há chances de intervir sem danos piores.
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''Danos Piores''. Agora eu conseguia encheragar o que essas palavras significavam. E, tenha certeza, eu não desejava esse destino para o meu pior inimigo - muito menos Oliver.
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- O que vamos fazer? - questionei por fim, a pressão em meus pulmões mais dolorosa do que nunca.
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- Hoje, nada... - afirmou Cirus, pondo-se de pé e indo em direção à cozinha da nossa casa de bombeiros - Amanhã, eu vou procurar no meu intervalo alguma peça que esteja faltando nesse nosso pequeno quebra-cabeça. Enquanto isso, quero que você fique de olho nesse Líon. Por mais que eu ache que o garoto-demônio possa demorar um pouco para agir novamente, é melhor estarmos preparados para qualquer surpresa, não?
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Concordei molemente com a cabeça, o cansaço e a força das revelações desta noite fazendo um grande esforço contra as minhas costas. Antes que eu pudesse pensar em fazer alguma coisa, meu pai voltou a se sentar no braço da poltrona ao meu lado, o olhar cintilando estranhamente à luz do anoitecer.
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- Tudo vai ficar bem, O.k.? - murmurou ele, ao mesmo tempo em que dava palmadinhas desajeitadas em minhas costas - Acho que tivemos um longo dia, não? Por que você não vai lá pra cima descansar um pouco enquanto eu preparo o jantar para nós dois?
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Era tudo o que eu precisava. Sem dizer uma palavra, me levantei da poltrona e fui para o meu quarto. Assim que entrei no cômodo, me atirei na cama e enfiei minha cara no travesseiro, sem me preocupar em ascender a luz. Pelo o que eu podia ver, o céu exibia profundos tons púrpura e já estava escuro o suficiente para que os lampiões de ruas estivessem acesos.
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Agora já estava bem esplícito o que havia acontecido no Pavilhão de Tortura. A questão era que a resposta havia me deixado mais encucado do que a própria pergunta. Eu não me sentia nem um pouco relaxado, muito pelo contrário, estava ainda mais apreensivo. Então Líon estava sendo perseguido por um demônio psicótico? Como a única pessoa legal que eu havia conhecido na Constantine poderia ser o objeto de ira de uma criatura tão malígna?
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Com o passar do tempo, fui sentindo meu corpo mais pesado e minha mente mais leve. Eu sabia que logo a inconsciência iria chegar, mas será que eu queria realmente dormir? Tentando não pensar no assunto, puxei minhas cobertas e me acomodei na cama. Entre as dúvidas que eu tinha sobre o presente e o meu pesadelo, eu ficava com segundo. Pelo menos, com ele eu só tinha tinha que me preocupar durante a noite.
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E foi assim que – ao tentar não me preocupar com nada - minhas pálpebras foram ficando cada vez mias pesadas e, junto com o sereno da noite, o sono chegou.